Em 2006, passei o mês de janeiro em Guiné Bissau, na África, junto com uma equipe que, por meio de atendimentos médicos, odontológicos e fisioterapêuticos, investiu na pregação do Evangelho. Atendi cerca de duzentas pessoas e não tenho nem ideia de quantas extrações dentais fiz – extraí nove dentes só de uma mulher. Apesar do trabalho árduo, o que mais trouxe dificuldades foi a diferença de cultura e de hábitos. Nesse aspecto, dei uma “mancada” que quase me custou uma surra de um grupo de jovens senegalezes.
Mesmo com as claras orientações do missionário que nos hospedou sobre o cuidado com as fotos, fotografei a estrutura de um mercado popular, algo parecido com barracas de camelôs, sem perceber que havia pessoas nas proximidades. Estas, ao perceberem o disparo da câmara, protestaram com veemência. Quando notei o que eu havia feito, me desculpei com eles na esperança de resolver o assunto. Mas, para meu espanto, foi chegando cada vez mais gente e cada vez mais brava. Uma missionária, então, interveio. Em lugar de melhorar a situação, outros homens se juntaram ao grupo com expressões de rancor, gritando coisas que eu não podia compreender. A única coisa que entendi, para meu desespero, foi a palavra “arrebentar”. Por fim, aos poucos fui afastado da multidão por uma pequena menina e posto em segurança dentro do carro. Que susto!
Davi teve um problema parecido, não com relação a fotografias, mas em relação à uma multidão contrária a ele. Absalão, por meio de dissimulações e tramoias, reuniu, em Hebrom, a título de uma festa pela tosquia do seu rebanho, um grupo de aristocratas e de militares de Israel (2Sm 15). Tendo combinado secretamente uma conspiração contra Davi em todo o país, no momento certo Absalão se proclamou rei em Hebrom e, ao som de trombetas tocadas do Sul até o Norte, a frase “Absalão é rei em Hebrom” foi proclamada por todo o reino. Apesar de as pessoas na festa nada saberem, as circunstâncias as obrigaram a aderir ao movimento. O mesmo ocorreu nos quatro cantos do território. Assim, em pouco tempo “tornou-se poderosa a conspirata e crescia em número o povo que tomava o partido de Absalão” (2Sm 15.12). O próximo passo de Absalão foi partir para Jerusalém a fim de tomar o trono de Davi, seu pai. Este, enquanto fugia do filho, foi ainda perseguido e atacado até por gente da própria Jerusalém (2Sm 16.5-8).
Nesse contexto, Davi exclama ao Senhor (v.1): “Como têm se multiplicado os meus inimigos; são muitos os que se levantam contra mim!” (mâ-rabbû tsaray rabbîm qamîm ‘alay). A palavra usada para “inimigos”, aqui, também pode ser traduzida como “agressores”. Tratava-se de um grupo violento. Davi tinha um histórico glorioso como guerreiro e como general. Venceu muitas vezes tropas numerosas. Mas, dessa vez, a situação era desesperadora. Quase todo o país se uniu a Absalão em um dos mais bem executados golpes de estado da História. Poucos foram os que permaneceram fiéis a Davi. Por causa disso, as pessoas olhavam para o rei e diziam (v.2): “Não há, para ele, salvação em Deus” (’ên yeshû‘atâ lô be’lohîm). Para os tais, nada podia salvar Davi.
Contrariando todas as expectativas, Davi não se desespera. Ele, em lugar disso, busca o Senhor com certas atitudes que devem ser compartilhadas por todos os servos de Deus. Em primeiro lugar, ele entrega seu caminho ao Senhor (v.3-5). Davi, falando da atuação de Deus em relação a ele diz: “Ele é ‘o escudo que me protege’ (magen ba‘adî), ‘a minha dignidade’ (kebôdî), ‘aquele que levanta a minha cabeça’ (merîm ro’shî). Com isso, Davi se esvazia da função de garantir seu próprio bem-estar, pois o responsável e o promotor desse bem é o Senhor em pessoa. Por esse motivo, Davi também não desanima, nem anda de cabeça baixa como quem não tem esperança. Imagine só o que essa esperança significa para um rei que tem de fugir da sua cidade parecendo um covarde, além de ser agredido verbalmente e se tornar alvo de pedras como se fosse um cachorro!
O rei Davi, também, durante a fuga diante dos inimigos, busca o Senhor em oração (vv.4,7). “Minha voz clama ao Senhor” (qôlî ’el-yehwâ ’eqra’) são as palavras utilizadas (v.4) para se referir à sua atitude de pedir a Deus, em oração, que faça o que ele, mesmo sendo rei, não conseguia fazer. No v.7 há um dos exemplos mais sucintos de oração e, ainda assim, mais corretos à vista da Teologia. O rei, deixando de lado a pompa, os métodos e os costumes, simplesmente se dirige a Deus com o clamor que sua necessidade exige: “Salva-me, meu Deus” (hôshî‘enî ’elohay). Não há como olhar para esse pedido sem recordar de Pedro, entre ondas bravias que o afundavam, clamando a Jesus: “Salva-me, Senhor!” (Mt 14.30). Apesar de, na hora das dificuldades, ser comum algumas pessoas se esquecerem de Deus para se concentrarem na solução dos problemas, é justamente nessa hora que os servos de Deus devem clamar “salva-me, Senhor”.
Como resultado da entrega e da oração, Davi, agora, descansa em Deus (vv.5,6). Apesar do conflito familiar, das acusações falsas e do real risco de perder a vida, ao dizer que se deita e dorme, ele completa: “Acordo porque o Senhor me mantém” (heqîtsôtî ki yehwâ yismekenî). Davi demonstra, nessa frase, não sofrer de insônia nas horas de tribulação justamente porque sabe que o Senhor atua na sua proteção e amparo. Isso o tranquiliza e o faz descansar. A coragem de Davi é fruto dessa confiança e não dos seus recursos militares. Diz: “Não temo a multidão de pessoas que me cercam” (lo’-’îrâ meribbôt ‘am ’asher savîv shatû ‘alay). Note bem: Davi escreve isso sabendo que, “de fato”, milhares de soldados estão se preparando para cercá-lo e matá-lo.
“A salvação pertence ao Senhor” (layhwâ hayshû‘â) é a declaração final do rei (v.8) mesmo quando tudo parece perdido, quando é tratado de modo indigno e vergonhoso e, ainda, quando tem todos os motivos para, humilhado e de cabeça baixa, desistir de tudo. Alguém até poderia dizer que Davi tinha “nervos de aço”, mas acho que ele não concordaria. Em lugar disso, ele falaria sobre a soberania de Deus, sobre seu amor e zelo pelos que lhe pertencem, sobre a confiabilidade de suas palavras, sobre o papel da oração e coisas do tipo. Enfim, Davi renderia toda a glória a Deus e, assim, explicaria sua confiança em um dos piores momentos da sua vida.
Recordando o susto que passei na África, quando a multidão aumentava em número e fúria contra mim, não me lembro de ter pensado em todos esses pontos teológicos extraídos do Salmo 3 – acho que isso nem aconteceu. Entretanto, seus efeitos práticos foram sentidos por mim. Se não me recordo de todos os detalhes do que pensei no momento, lembro-me como se tudo tivesse ocorrido ontem, que, como o salmista e o apóstolo, confiante no poder de Deus, clamei de todo o coração: “Salva-me, Senhor”.
Pr. Thomas Tronco
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