Li na Internet uma história que me chamou a atenção. Ela contava que, em 1948, um dentista carioca viajou até uma pequena cidade do interior de Minas Gerais a fim de colocar em ordem negócios familiares. O caso é que sua irmã havia passado um tempo naquela cidade, onde fora seduzida pelo clérigo local. A intenção do jovem dentista era dar uma solução ao estado desonroso da irmã, convencendo o prelado a se casar com a moça. Como isso não aconteceu, o dentista executou o sedutor. Ele, obviamente, foi preso e houve grande comoção local. Percebendo a temperatura dos ânimos e como isso poderia influenciar o julgamento, a defesa conseguiu transferir o processo judicial para outro foro, onde alegou inocência do réu com base na tese de “legítima defesa da honra”.
Esse argumento, hoje rejeitado pela maioria dos juristas, conseguiu livrar o assassino da devida condenação que merecia em duas instâncias judiciais. Os jurados, na época, acharam que o réu, desonrado como foi, tinha o direito de matar a vítima. Apesar de surpreendente, esse não é um exemplo único de tal decisão. Esse absurdo foi efetivado vezes e mais vezes na história do Direito no Brasil, principalmente em casos de maridos traídos pelas esposas. Sob a desculpa de defender a honra ferida pela traição, muitos maridos, no passado, assassinaram suas esposas e saíram impunes.
A Bíblia também narra casos de traição. Um deles é pano de fundo da composição do Salmo 54. Nesse caso, a traição não foi entre cônjuges, mas entre israelitas da mesma tribo. Davi, o escritor do salmo, foi o alvo da traição e sua reação foi – e ainda é – um modelo para os servos de Deus. O contexto é apontado no título do salmo: “Quando vieram os zifeus e disseram a Saul: acaso não está Davi conosco?” (bebô’ hazzîfîm wayyo’merû lesha’ûl halo’ dawid mistater ‘immanû). Com essa menção fica fácil associar o salmo aos episódios narrados em 1Samuel 23 e 26.
Davi, nessa ocasião, estava fugindo de Saul para não ser morto. Enquanto fugia, ficou sabendo de uma invasão filisteia à cidade de Queila, no território de Judá, tribo de Davi. Apesar do risco e do medo de serem pegos, Davi e seus homens foram a Queila e a libertaram dos inimigos. Com a notícia de que Saul vinha para cercá-los, fugiram da cidade e rumaram para o deserto de Zife, a sudeste de Hebrom. A distância e a falta de informações do rei mantinham Davi e seus soldados seguros. Porém, os homens de Zife, israelitas que, como Davi, pertenciam à tribo de Judá (Js 15.24), quiseram aproveitar a oportunidade para, traindo seu irmão, obterem vantagens do rei (1Sm 23.19,20). A traição dos zifeus quase custou a cabeça de Davi (1Sm 23.25-28). O pior só não aconteceu porque os filisteus lançaram outro ataque e Saul teve de abandonar a caçada para combater os invasores.
Ao reagir à traição dos seus irmãos, Davi exemplifica quatro reações que o servo de Deus deve ter ao ser traído pelos homens. Em lugar de buscar vingança por causa da traição, a primeira reação de Davi o faz buscar a Deus por meio da oração humilde. Sem qualquer tipo de bravata ou juramento de ser capaz, por si mesmo, de se livrar dos inimigos, Davi recorre ao Senhor como alguém necessitado. A correta noção da sua situação e o conhecimento do poder de Deus dão o tom humilde da oração davídica (vv.1,2): “Salva-me pelo teu nome, ó Deus, e faça-me justiça com a tua força. Ouve a minha oração, ó Deus, e atenta para as palavras da minha boca” (’elohîm beshimka hôshî‘enî ûbigvôrotka tedînenî ’elohîm shema‘ tefillatî ha’azîâ le’imrê-pî). A insistência na súplica é um traço marcante da humildade de Davi por causa da incapacidade de lidar com os perigos que o cercavam. As rimas e os paralelismos fáceis de notar tornam essa oração um singular cântico que exalta o poder de Deus e ressalta a humildade do servo.
A segunda reação é o resultado coerente da primeira: a dependência de Deus. Entretanto, nesse aspecto, Davi não faz segredos. O que, normalmente, seria uma vergonha para alguns homens, visto ser a própria declaração de impotência, para Davi a dependência parece ser um ato cultual. Desse modo, ele demonstra com hombridade ter, de Deus, uma dependência pública. O salmista não quer orar em secreto e fingir diante de todos que consegue lidar com o peso das circunstâncias. Ele compõe um canto e nele declara a todos (v.4): “Eis que Deus é o meu protetor. O Senhor é o sustentador da minha alma” (hinneh ’elohîm ‘ozer lî ’adonay besomekê nafshî). Levando em conta que “minha alma”, nesse contexto, é uma sinédoque que aponta para Davi como um todo – a total dependência que Davi sente e declara ter em Deus é motivo de encorajamento para os servos de Deus terem menos coragem em si mesmos e mais confiança no Todo-poderoso.
A terceira reação, talvez a mais difícil delas, é manter a atitude justa. Seguindo a lógica dos antigos tribunais brasileiros, Davi podia se dizer ferido e traído, sentindo-se livre para agir como seu ímpeto mandasse. Poderia buscar vingança por meio de um ataque violento aos zifeus, com seu pequeno exército particular, explicando que ficou muito magoado com a traição. Podia até dizer que sua honra foi ferida. Mas ele não fez nada disso. Mesmo se sentindo traído por seu próprio povo a quem ele defendia com risco pessoal, Davi entregou o caso ao Senhor, o justo e sábio juiz capaz de julgar situações como essa. Por isso, afirma (v.5): “[Deus] fará o mal voltar aos meus inimigos. Faze-os calar por meio da tua fidelidade” (yashiwb hara‘ leshoreray ba’amitteka hatsmîtem).
Na verdade, esse é um traço marcante de Davi. Mesmo quando os homens eram desleais com ele, ele não era desleal com os traidores. Outro exemplo dessa atitude é a postura de Davi quando teve oportunidade de matar Saul, acabar com a perseguição injusta e, como prêmio adicional, ser feito rei sobre Israel. Nessa ocasião, Davi fez o que ninguém esperava. Quando seus amigos lhe sugeriram um ataque mortal a Saul, Davi lhes explicou que cabia ao Senhor vingar o mal: “Davi, porém, respondeu a Abisai: não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto” (1Sm 26.9,10). O próprio Jesus apresentou a mesma disposição de manter a justiça entregando os desmandos a Deus: “Pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente” (1Pe 2.23). Tanto Davi como Jesus rejeitariam a tese da “legítima defesa da honra” utilizada para acobertar uma vingança.
A quarta reação é a adoração voluntária ao Senhor. Ainda que o momento fosse delicado para o salmista e ele tivesse inúmeras preocupações e afazeres para manter a própria segurança e a dos seus homens, ele não deixa de pensar na devida adoração que deve a Deus. Diz ele (v.6): “Que eu te ofereça sacrifícios por iniciativa própria” (bindavâ ’ezbehâ-lak). Enquanto uma acusação frequente aos israelitas, principalmente aos sacerdotes, era a religiosidade vazia por meio de sacrifícios externos que não refletiam o íntimo dos ofertantes, Davi se apresenta com uma disposição totalmente diferente. Voluntariamente, ou “por iniciativa própria”, ainda que passasse por problemas, ele adoraria ao Senhor e lhe ofereceria o fruto do seu louvor. Nessa atitude ele deixa de fora qualquer tipo de barganha para tentar se beneficiar do poder de Deus. Exime-se, também, de cumprir mecanicamente preceitos que não traduzem seu desejo pessoal. Na verdade, ele não precisa de tais expedientes uma vez que realmente confia no Senhor e depende da sua bondade. Quando ele adora ao Senhor, o faz de coração, de todo coração.
Quem já passou dissabores e decepções com pessoas próximas, sabe o que significa o exemplo que Davi deixou. Quem conhece o ardor da indignação e da fúria que acomete aqueles que são trapaceados por pessoas em quem confiam, sabem o alento obtido pelo exemplo de um homem que agiu corretamente provando ser possível, pela graça de Deus, suportar a dor de uma situação como essa. E quem quer, de fato, servir a Cristo, certamente concorda que ver seu próprio mestre sendo exemplo de uma atitude tão radicalmente contrária ao mundo é um encorajamento incomparável. Que em momentos assim, palavras como “honra” nos lembrem do nosso dever para com Deus e não do nosso orgulho ferido. E, lembrando disso, que sejamos nós, discípulos de Jesus, aqueles que realmente promovem a “legítima defesa da honra”, a saber, a “honra” do nome do nosso Deus.
Pr. Thomas Tronco
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