Meu avô era um homem interessante. Seu mau humor nos últimos anos de vida, devido à sua debilitada condição de saúde, não conseguiu apagar as memórias que tenho de vê-lo trabalhando em hortas que sempre produziam uma quantidade impressionante de alimentos com qualidade tal que nunca vi em outro lugar. Contudo, algo de que recordo atônito, ainda hoje, é de ele me contar a história da Europa, do mundo antigo e das colonizações como se fosse um professor. As histórias não eram apenas interessantes, mas verdadeiras, visto que as confirmava nas minhas aulas de História. Meu pai, mais que meu avô, me ensinou muita coisa. Mas ele é um homem estudado, aprendeu na escola o que me ensinou. Já, meu avô, sabia apenas ler. Isso é o que me deixava atônito.
Diante de tal espanto, certa vez lhe perguntei como é que ele sabia todas aquelas coisas. Ele me contou que seu pai lhe havia ensinado tudo aquilo. Dizia que se sentava com ele e o ouvia falar por horas. Em parte, essa resposta me satisfez. Contudo, a dúvida que nunca tirei é: “E como meu bisavô sabia tudo aquilo?”. O fato é que o ensino de pai para filho e de uma pessoa experiente para alguém que está começando a vida é algo marcante e produtivo. Quem dera tivéssemos mais tempo, no meio da pressa dos nossos dias, para exercitarmos essas aulas informais ao redor da mesa da cozinha e da garrafa de café!
O Salmo 44 dá mostras da validade e da importância desse ensino de uma geração para a outra. O salmista, descendente de Corá e membro de uma família dedicada ao serviço do Senhor no Templo, se vê em uma situação complicada que parece envolver uma derrota militar (vv.9,10) e suas naturais consequências como exílio (vv.11,12) e desprezo das nações vizinhas (vv.13,14). O próprio salmista pode ser um dos que estão exilados, conforme demonstram os salmos 42 e 43. Nesse contexto de sofrimento e desânimo, percebe-se a importância do ensino passado pela geração anterior. O salmo começa com a seguinte declaração (v.1): “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos” (’elohîm be’oznênû shama‘nû ’avôtênû sifferû-lanû po‘al pa‘alta bîmêhem bîmê qedem). Com esse conhecimento em mãos, o salmista obtém quatro benefícios para sua vida.
O primeiro benefício é conhecer o caráter de Deus. As gerações passadas de israelitas se esmeraram em guardar e transmitir as memórias dos atos de Deus em seu benefício. Por isso, o salmista podia falar a Deus (v.2): “Por tuas mãos tu expulsaste as nações e os [pais] assentaste; trouxeste dano aos povos e os [pais] enviaste no lugar” (’attâ yadka gôyim horashta wattitta‘em tara‘ le’ummîm watteshalehem). Quando o salmista diz “os assentaste” e “os enviaste” está se referindo aos pais que lhe contaram a história (v.1), apesar de não aparecer a palavra “pais”, mas sim, um sufixo que aponta para eles. Em resumo, trata-se da conquista de Canaã promovida por Deus para dar a terra aos israelitas conforme a promessa feita a Abraão (Gn 13.14-17; 15.18-20). Com isso, o salmista aprendeu que Deus é poderoso e, acima de tudo, fiel para cumprir o prometido. Essa lição produziu no autor dois sentimentos: confiança e gratidão. A confiança é expressa no v.6: “Não confio no meu arco e não é minha espada quem me salva” (lo’ beqashtî ’evtah weharbî lo’ hôshî‘enî). A gratidão, no v.8: “Nós louvamos a Deus todos os dias e celebraremos o teu nome para sempre” (be’lohîm hillalnû kal-hayyôm weshimka le‘ôlam nôdeh). Que aprendizado melhor que esse para se obter por meio da história daquilo que Deus fez por meio do seu caráter santo?
O segundo benefício é reconhecer a provação divina. Acontecimentos ruins sobrevieram ao exército de Judá. Perderam batalhas e fugiram derrotados pelos inimigos. Alguém poderia dizer “que má sorte!” ou “a culpa é do general!”. Entretanto, o salmista parece conhecer o procedimento de Deus pelo que ouviu dos antepassados. Com base nisso, soube que se tratava de uma atuação deliberada de Deus (v.9): “Mas tu nos rejeitaste, nos humilhaste e não sais com nossos exércitos” (’af-zenahtanû wataklîmenû welo’a-tetse’ betsiv’ôteynû). Há nesse versículo uma mudança muito grande no tipo de atuação de Deus. Antes (vv.1-8) o Senhor se mostrou um Deus guerreiro ao lado de Israel e protetor do seu povo, enquanto, agora, deixa-o marchar sozinho e não lhe favorece com a vitória. Aliás, Deus foi o autor da desgraça militar de Judá nessa ocasião, já que o salmista diz, entre os vv.10-14, “tu nos fizeste voltar atrás fugindo do inimigo” (teshîvenû ’ahôd minnî-tsar), “tu nos entregaste como ovelhas de corte” (tittenenû ketso’n ma’akal), “tu vendeste o teu povo por preço barato” (timkor-‘ammeka belo’-hôn), “tu nos transformaste em objeto de escárnio para os nossos vizinhos” (tesîmenû herpâ lishkenênû) e “tu nos transformaste em um provérbio entre as nações” (tesîmenû mashal baggôyim). Para o salmista, é muita clara a participação de Deus nos eventos que os assolam. O que esse salmo tem de diferente dos vistos até aqui é que, diferente de Davi que via em tais situações uma disciplina de Deus, esse salmista vê a mão do Senhor trazendo-lhes uma provação apesar da fidelidade que ele e um remanescente fiel mantinham (vv.17-22), apesar de o restante do povo ser possivelmente merecedor da disciplina – e, talvez, para eles o fosse mesmo. Entretanto, o remanescente, mesmo diante da provação, não se rebela contra Deus, nem desiste de servi-lo.
O terceiro é manter-se fiel a Deus. Como dito acima, o escritor do salmo olha para sua vida e se vê fiel a Deus (v.17): “Tudo isso veio a nós, mas não nos esquecemos de ti, nem violamos a tua aliança” (kal-zo’t ba’atnû welo’ shekahanûka welo’-shiqqarnû bibrîteka). É uma frase realmente encorajadora quando olhamo-la diante da situação em que vive o salmista. O conhecimento que ele e seus pares receberam dos antepassados os ensinaram o suficiente sobre o modo de Deus agir com suas ordens e com as circunstâncias para que soubessem não se tratar de uma punição injusta (vv.18-21). Eles, certamente, não conheciam os detalhes dos propósitos de Deus, mas sabiam quem Deus era. Por isso, o escritor do salmo termina esse trecho afirmando sua desventura, mas não com amargura. Na verdade, o faz em um tom que glorifica a Deus e encoraja o leitor a ser fiel nos revezes e nas perseguições que sofre por amor e fidelidade a Deus (v.22): “Assim, por ti somos mortos todos os dias; somos tidos como ovelhas a serem executadas” (kî-‘aleyka horagnû kal-hayyôm nehshavnû ketso’n tivhâ). É claro que o salmista não fora morto até então, de modo que a figuração “ser morto todos os dias” expõe as condições deploráveis em que eles viviam sob reais ameaças de morte. E tudo isso eles passavam, segundo diz o texto, “por ti”, ou seja, por amor a Deus e por se manterem fiéis a ele.
O quarto benefício é manter a esperança na provação. Uma lição importantíssima que o conhecimento que veio das gerações anteriores certamente transmitiu foi o valor e a importância da oração. Por isso, esse salmo não poderia, depois de expor tanto sofrimento, terminar sem uma oração esperançosa por socorro (v.23): “Desperta! Por que estás dormindo, Senhor? Acorda! Não nos rejeite perpetuamente!” (‘ûrâ lammâ tîshan ’adonay haqîtsâ ’al-tiznah lanetsah). Dificilmente o salmista quer dizer, por meio da figura do “sono de Deus”, que o Senhor está alheio à situação, ou incapacitado, já que afirmou que ele é o responsável pela provação. Assim, o salmista, figuradamente, refere-se à espera de Deus até o momento de libertá-los. Apesar do silêncio divino em tal ação, o salmista aprendeu com os antepassados que Deus é misericordioso e tem prazer em restaurar os seus – vide o livro de Juízes, por exemplo. Portanto, é cheia de esperança a frase que encerra a oração e o salmo (v.26): “Faça surgir socorro para nós e resgata-nos por causa da tua fidelidade” (qûmâ ‘ezratâ lanû ûpedenû lema‘an hasdeka).
Depois disso tudo, quem, em sã consciência, ainda pode desprezar o estudo das Escrituras ou lhe criar nomes que transmitam sentidos pejorativos? Quem menosprezará a pregação bíblica nos cultos de adoração ao Deus que nos deu sua palavra de modo tão maravilhoso? Quem poderá, insensivelmente, desprezar as santas orientações para a vida cristã e para o serviço de Deus? “Pois tudo”, afirmou o apóstolo, “quanto, outrora, foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
E mais: quem se omitirá em transmitir à próxima geração a mensagem que temos agora aprendido? Afinal, chegará o dia em que será a vez de os nossos filhos dizerem: “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos”.
Pr. Thomas Tronco
Nenhum comentário:
Postar um comentário