
Diante de tal espanto, certa vez lhe perguntei como é que ele sabia todas aquelas coisas. Ele me contou que seu pai lhe havia ensinado tudo aquilo. Dizia que se sentava com ele e o ouvia falar por horas. Em parte, essa resposta me satisfez. Contudo, a dúvida que nunca tirei é: “E como meu bisavô sabia tudo aquilo?”. O fato é que o ensino de pai para filho e de uma pessoa experiente para alguém que está começando a vida é algo marcante e produtivo. Quem dera tivéssemos mais tempo, no meio da pressa dos nossos dias, para exercitarmos essas aulas informais ao redor da mesa da cozinha e da garrafa de café!
O Salmo 44 dá mostras da validade e da importância desse ensino de uma geração para a outra. O salmista, descendente de Corá e membro de uma família dedicada ao serviço do Senhor no Templo, se vê em uma situação complicada que parece envolver uma derrota militar (vv.9,10) e suas naturais consequências como exílio (vv.11,12) e desprezo das nações vizinhas (vv.13,14). O próprio salmista pode ser um dos que estão exilados, conforme demonstram os salmos 42 e 43. Nesse contexto de sofrimento e desânimo, percebe-se a importância do ensino passado pela geração anterior. O salmo começa com a seguinte declaração (v.1): “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos” (’elohîm be’oznênû shama‘nû ’avôtênû sifferû-lanû po‘al pa‘alta bîmêhem bîmê qedem). Com esse conhecimento em mãos, o salmista obtém quatro benefícios para sua vida.
O primeiro benefício é conhecer o caráter de Deus. As gerações passadas de israelitas se esmeraram em guardar e transmitir as memórias dos atos de Deus em seu benefício. Por isso, o salmista podia falar a Deus (v.2): “Por tuas mãos tu expulsaste as nações e os [pais] assentaste; trouxeste dano aos povos e os [pais] enviaste no lugar” (’attâ yadka gôyim horashta wattitta‘em tara‘ le’ummîm watteshalehem). Quando o salmista diz “os assentaste” e “os enviaste” está se referindo aos pais que lhe contaram a história (v.1), apesar de não aparecer a palavra “pais”, mas sim, um sufixo que aponta para eles. Em resumo, trata-se da conquista de Canaã promovida por Deus para dar a terra aos israelitas conforme a promessa feita a Abraão (Gn 13.14-17; 15.18-20). Com isso, o salmista aprendeu que Deus é poderoso e, acima de tudo, fiel para cumprir o prometido. Essa lição produziu no autor dois sentimentos: confiança e gratidão. A confiança é expressa no v.6: “Não confio no meu arco e não é minha espada quem me salva” (lo’ beqashtî ’evtah weharbî lo’ hôshî‘enî). A gratidão, no v.8: “Nós louvamos a Deus todos os dias e celebraremos o teu nome para sempre” (be’lohîm hillalnû kal-hayyôm weshimka le‘ôlam nôdeh). Que aprendizado melhor que esse para se obter por meio da história daquilo que Deus fez por meio do seu caráter santo?
O segundo benefício é reconhecer a provação divina. Acontecimentos ruins sobrevieram ao exército de Judá. Perderam batalhas e fugiram derrotados pelos inimigos. Alguém poderia dizer “que má sorte!” ou “a culpa é do general!”. Entretanto, o salmista parece conhecer o procedimento de Deus pelo que ouviu dos antepassados. Com base nisso, soube que se tratava de uma atuação deliberada de Deus (v.9): “Mas tu nos rejeitaste, nos humilhaste e não sais com nossos exércitos” (’af-zenahtanû wataklîmenû welo’a-tetse’ betsiv’ôteynû). Há nesse versículo uma mudança muito grande no tipo de atuação de Deus. Antes (vv.1-8) o Senhor se mostrou um Deus guerreiro ao lado de Israel e protetor do seu povo, enquanto, agora, deixa-o marchar sozinho e não lhe favorece com a vitória. Aliás, Deus foi o autor da desgraça militar de Judá nessa ocasião, já que o salmista diz, entre os vv.10-14, “tu nos fizeste voltar atrás fugindo do inimigo” (teshîvenû ’ahôd minnî-tsar), “tu nos entregaste como ovelhas de corte” (tittenenû ketso’n ma’akal), “tu vendeste o teu povo por preço barato” (timkor-‘ammeka belo’-hôn), “tu nos transformaste em objeto de escárnio para os nossos vizinhos” (tesîmenû herpâ lishkenênû) e “tu nos transformaste em um provérbio entre as nações” (tesîmenû mashal baggôyim). Para o salmista, é muita clara a participação de Deus nos eventos que os assolam. O que esse salmo tem de diferente dos vistos até aqui é que, diferente de Davi que via em tais situações uma disciplina de Deus, esse salmista vê a mão do Senhor trazendo-lhes uma provação apesar da fidelidade que ele e um remanescente fiel mantinham (vv.17-22), apesar de o restante do povo ser possivelmente merecedor da disciplina – e, talvez, para eles o fosse mesmo. Entretanto, o remanescente, mesmo diante da provação, não se rebela contra Deus, nem desiste de servi-lo.
O terceiro é manter-se fiel a Deus. Como dito acima, o escritor do salmo olha para sua vida e se vê fiel a Deus (v.17): “Tudo isso veio a nós, mas não nos esquecemos de ti, nem violamos a tua aliança” (kal-zo’t ba’atnû welo’ shekahanûka welo’-shiqqarnû bibrîteka). É uma frase realmente encorajadora quando olhamo-la diante da situação em que vive o salmista. O conhecimento que ele e seus pares receberam dos antepassados os ensinaram o suficiente sobre o modo de Deus agir com suas ordens e com as circunstâncias para que soubessem não se tratar de uma punição injusta (vv.18-21). Eles, certamente, não conheciam os detalhes dos propósitos de Deus, mas sabiam quem Deus era. Por isso, o escritor do salmo termina esse trecho afirmando sua desventura, mas não com amargura. Na verdade, o faz em um tom que glorifica a Deus e encoraja o leitor a ser fiel nos revezes e nas perseguições que sofre por amor e fidelidade a Deus (v.22): “Assim, por ti somos mortos todos os dias; somos tidos como ovelhas a serem executadas” (kî-‘aleyka horagnû kal-hayyôm nehshavnû ketso’n tivhâ). É claro que o salmista não fora morto até então, de modo que a figuração “ser morto todos os dias” expõe as condições deploráveis em que eles viviam sob reais ameaças de morte. E tudo isso eles passavam, segundo diz o texto, “por ti”, ou seja, por amor a Deus e por se manterem fiéis a ele.
O quarto benefício é manter a esperança na provação. Uma lição importantíssima que o conhecimento que veio das gerações anteriores certamente transmitiu foi o valor e a importância da oração. Por isso, esse salmo não poderia, depois de expor tanto sofrimento, terminar sem uma oração esperançosa por socorro (v.23): “Desperta! Por que estás dormindo, Senhor? Acorda! Não nos rejeite perpetuamente!” (‘ûrâ lammâ tîshan ’adonay haqîtsâ ’al-tiznah lanetsah). Dificilmente o salmista quer dizer, por meio da figura do “sono de Deus”, que o Senhor está alheio à situação, ou incapacitado, já que afirmou que ele é o responsável pela provação. Assim, o salmista, figuradamente, refere-se à espera de Deus até o momento de libertá-los. Apesar do silêncio divino em tal ação, o salmista aprendeu com os antepassados que Deus é misericordioso e tem prazer em restaurar os seus – vide o livro de Juízes, por exemplo. Portanto, é cheia de esperança a frase que encerra a oração e o salmo (v.26): “Faça surgir socorro para nós e resgata-nos por causa da tua fidelidade” (qûmâ ‘ezratâ lanû ûpedenû lema‘an hasdeka).
Depois disso tudo, quem, em sã consciência, ainda pode desprezar o estudo das Escrituras ou lhe criar nomes que transmitam sentidos pejorativos? Quem menosprezará a pregação bíblica nos cultos de adoração ao Deus que nos deu sua palavra de modo tão maravilhoso? Quem poderá, insensivelmente, desprezar as santas orientações para a vida cristã e para o serviço de Deus? “Pois tudo”, afirmou o apóstolo, “quanto, outrora, foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
E mais: quem se omitirá em transmitir à próxima geração a mensagem que temos agora aprendido? Afinal, chegará o dia em que será a vez de os nossos filhos dizerem: “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos”.
Pr. Thomas Tronco
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