Espanta-me nos debates teológicos recentes a falta de referências à Escritura. Alguns escritores propõem revisões radicais e, na maioria das vezes, em ruptura com a tradição cristã na doutrina de Deus e da salvação sem a menor preocupação em remeter seus leitores (ou, pelo menos, suas tribos ou guetos) para a Escritura – que, pelo menos em anos recentes, era tomada como a incondicional Palavra de Deus por aqueles que se identificavam como cristãos. Mesmo debates básicos, como sobre aspectos da ética cristã, são pautados não mais pela Escritura, mas pela mera opinião pessoal ou, no melhor espírito de manada, por seguir cegamente a opinião do líder. Vai-se assumindo que a Escritura pode até ser um livro importante, uma coletânea de bons conselhos, ou mesmo que contenha uma mensagem vagamente piedosa em meio a histórias de guerras, traições e matanças, mas que, finalmente, por meio de nossa razão ou intuição, podemos alcançar e descobrir Deus acima e além da Escritura.
Isso não é novo. É o mesmo esforço religioso e idolátrico presente na construção da torre de Babel. E o relato bíblico é claro: Deus despreza a ação religiosa, bagunçando-a e repelindo-a, posto ela ser somente isto: esforço e idolatria. Mas, para os cristãos, quando as Escrituras falam, é Deus mesmo quem fala, e fala a nós. Deus dixit! Dominus dixit! E nas Escrituras aprendemos que, do começo ao fim, é o Senhor Deus Todo-poderoso quem busca os seus, por pura misericórdia, em Cristo Jesus.
Antigamente, os fundamentalistas usavam a Escritura como texto-prova (dicta probantia). Podiam praticar uma hermenêutica literalista ou ingênua. Mas havia uma genuína preocupação em citar o texto bíblico, de remeter seus ensinos para a Escritura. Hoje, nem isso. De um lado, a invasão dos métodos críticos na interpretação da Escritura supostamente tornou sem razão afirmar algo a partir das Escrituras, já que esta, para muitos dos que seguem tais metodologias – não é mais inspirada, mas mero produto humano. Do outro lado, as supostas novas revelações ligadas aos bispos e apóstolos neopentecostais tornaram a Escritura um mero acessório em suas comunidades. Por isso, no âmbito eclesiástico, basta unir alguns chavões piedosos à linguagem religiosa e qualquer ideia passará facilmente por “cristã”. E os fiéis a seguem, sem nem mesmo se preocuparem em examinar “as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim” (Atos 17.11). A nobreza foi perdida. Por isso, o que se tem é o ressurgimento do velho gnosticismo, mais uma vez tentando se parecer com o cristianismo. Mas gnosticismo não é cristianismo.
Na medida em que a igreja brasileira loucamente tenta colocar de lado o “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível” (1Tm 6.15-16), uma nova casta sacerdotal vai surgindo, com seus apóstolos e bispos endinheirados, e com certos eruditos que constantemente precisam apelar à falácia do argumento magister dixit, enquanto se agarraram às teorias críticas do século 19 como se fossem a última moda teológica, todos igualmente caricatos e bufões. E vive-se o absurdo em que abandonar a Escritura, desprezar a igreja, transformar Jesus num curandeiro ou mestre inofensivo é ser de vanguarda, mas qualquer crítica feita a essa nova classe sacerdotal, grandemente responsável por essa doença, equivale à blasfêmia, atraindo a ira e a revolta de seus cegos seguidores, que se juntam em correntes de ódio.
E nisso novas ideias tentam tomar o lugar da reta doutrina, do puro evangelho – podem ser o pelagianismo, a mensagem da prosperidade, o teísmo aberto ou o marxismo cultural, que tomou de assalto todas as esferas da sociedade, que anseia por inaugurar um suposto milênio na Terra, a utopia totalitária do “outro mundo possível”. Tristemente, alguns cometem a alucinada infâmia de tentar misturar a absoluta Palavra de Deus em Jesus Cristo com uma ideologia corrupta e corruptora, o sistema de ideias mais assassino da história. Em sua loucura, todos esses pervertem a mensagem cristã, seguindo não mais o evangelho, mas correndo atrás de outro tipo de anúncio (ετερον εuαγγέλιον), mera perversão ou caricatura, não mais a boa-nova da salvação de Deus em Cristo, que justifica, redime, reconcilia e adota ímpios pela fé somente, regenerando-os por meio da obra do Espírito Santo. A mensagem para esses que abandonaram a pura Palavra de Deus é: “Ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema” (Gl 1.8-9).
Tristemente, o veredito de Bonhoeffer sobre o cristianismo nos Estados Unidos do fim da década de 1930 descreve com exatidão os evangélicos no Brasil:
Deus não concedeu ao cristianismo americano nenhuma reforma. Ele lhe concedeu vigorosos pregadores reavivalistas, pastores e teólogos, mas nenhuma reforma da igreja de Jesus Cristo por meio da Palavra de Deus. Qualquer coisa das igrejas da Reforma que chegou à América ou está em exclusão consciente e afastada da vida geral da igreja ou foi vítima do protestantismo sem reforma… A teologia americana e a igreja americana como um todo nunca foram capazes de compreender o significado da “censura” pela Palavra de Deus e tudo o que isso significa. Do primeiro ao último, eles não entendem que a “censura” de Deus toca até mesmo a religião, o cristianismo da igreja e a santificação dos cristãos, bem como que Deus fundou sua igreja para além da religião e para além da moralidade. Um sintoma disso é a adesão geral à teologia natural. Na teologia americana, o cristianismo ainda é essencialmente religião e moralidade. Por causa disso, a pessoa e a obra de Cristo, na teologia, vão permanecer em segundo plano e, por longo tempo, ficar incompreendidas, porque não são reconhecidas como o único fundamento do julgamento e do perdão radical. A principal tarefa na atualidade é o diálogo entre o protestantismo sem reforma e as igrejas da reforma. [Dietrich Bonhoeffer, Protestantism without the Reformation, em Edwin H. Robertson (org.), No Rusty Swords: Letters, Lectures and Notes, 1928-1936 (Londres: Collins, 1965), p. 92-118.]
A crítica desse mártir sobre o cristianismo nos Estados Unidos está essencialmente correta e se aplica integralmente a nós, hoje, no Brasil. Em resumo, para grande parte dos evangélicos brasileiros, o cristianismo é essencialmente sobre o que se faz para Deus. E é justamente nesse ponto que rompemos totalmente com a fé bíblica redescoberta na Reforma, pois esta enfatiza e ensina somente o que Deus faz por nós por meio do Cristo crucificado, dando prioridade à graça livre e soberana, agindo em meio ao nosso pecado, vício e escravidão existencial, redimindo-nos e tornando-nos novas criaturas. A mensagem do evangelho não é um recurso para melhorar nossa autoestima ou para nos ajudar a ascender socialmente, ou fazer a igreja crescer em cinco passos ou qualquer outra coisa desse gênero; é sobre ouvir e crer na mensagem revelada na Escritura sobre a graça de Deus em Cristo crucificado; é sobre nossa morte e ressurreição, nossa morte e ressurreição diárias, enquanto aguardamos novos céus e nova Terra.
Pr. Franklin Ferreira
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