Meu casamento aconteceu em 1997, quando eu morava na cidade de Grão Mogol, no sertão mineiro. Eu e minha esposa resolvemos fazer a cerimônia na igreja em Atibaia (SP), pois a maior parte dos nossos parentes morava ali, sendo mais fácil deslocar os que moravam fora. Contudo, devido ao tempo e aos procedimentos que envolvem o casamento no cartório, a união legal teve de ser providenciada em Minas Gerais. Cumpri todos os requisitos exigidos e me dirigi ao cartório, com os familiares e amigos, a fim de realizar a tão feliz cerimônia. Estava tudo perfeito até o escrivão ler, no documento oficial, que estávamos nos casando em “regime parcial de bens”.
Em relação a bens, eu não tinha nada a ser partilhado e de modo algum pretendia que isso fosse algum dia necessário. Entretanto, eu não queria a expressão “união parcial” escrita em lugar nenhum que dissesse respeito a mim e à minha esposa. Pedi para mudar, mas já não era mais possível. Eu tinha de ter pedido isso no início do processo, mas como foi a única vez em que me casei, não tinha a menor ideia da necessidade de fazê-lo. Como o escrivão não me preveniu sobre isso a tempo, explicou, meio sem graça, que, antigamente, todos os casamentos eram com união total de bens, a não ser quando os noivos especificavam que desejavam outro tipo de união. Entretanto, pelo alto número de casamentos por interesse na herança da família do cônjuge, alguns deles até mesmo terminando em morte, a lei foi alterada e o formato padrão dos casamentos agora era a união parcial. Não deixei isso entristecer um dia tão alegre, mas não pude deixar de ficar perplexo ao pensar na ganância de muitas pessoas sobre a herança do marido ou da esposa.
O rei Davi também desejou uma herança, mas desejou-a de modo muito diferente. Na verdade, a própria herança era de natureza diferente e Davi escreveu sobre ela no Salmo 16. Mais uma vez ele escreveu um salmo quando era perseguido por inimigos. Entretanto, a diferença entre esse salmo e os outros é que, em lugar de o autor falar da sua confiança na libertação divina, ele olha para o que Deus representa para ele fazendo nublar ao redor os seus problemas.
Depois de declarar que Deus é seu refúgio e que o destino dos ímpios é terrível (vv.1-4), Davi declara o que Deus significa para ele (v.5): “Minha porção da herança” (menat-helqî). Como no v.2 o salmista diz “minha riqueza não está além de ti” (tôbatî bal-‘aleika), parece que a figura central que molda seu pensamento enquanto escreve é o aspecto do Senhor como “a verdadeira riqueza dos seus servos”. Ele diz mais, no v.5, descrevendo Deus como “o meu cálice e aquele que me faz próspero” (wekôsî ’attâ tômîk gôralî).
Depois de falar sobre tanta riqueza, era de se esperar que o salmista apresentasse, agora, uma lista de bens como palácios, peças de ouro e prata, propriedades e povos que o servem e que lhe são tributários – tudo isso dado por Deus. Mas não é isso o que acontece. O salmista fala, sim, sobre riquezas, mas sob um prisma diferente que revela a escala de valores que ele tem. Ele aponta quatro riquezas que vêm do Senhor a ele.
A primeira é o ensino reto (v.7). Davi diz, nesse sentido, duas verdades. Uma, referindo-se à atuação de Deus, é “o Senhor que me aconselhou” (yehwâ ’asher ye‘atsanî). A segunda, completando a primeira cláusula, trata do modo como Deus transmitiu tal conselho a Davi: “Pois minhas vergonhas me instruíram durante as noites” (’af-leylôt yisserûnî kilyôtay). É muito provável que Davi se refira, por meio desse versículo, à direção de Deus no seu íntimo lhe revelando os pecados que o atormentavam durante as noites, em sua cama. O resultado final dessa atuação divina foi o arrependimento do rei de Israel e sua mudança de atitude. Em resumo, quando Davi pecou, o Senhor lhe ensinou o que fazer.
A segunda é a presença constante (v.8). O salmista diz: “Tenho o Senhor diante de mim continuamente” (shiûîtî yehwâ lenegdî tamîd). Isso representa tanto a presença contínua de Deus com seu servo como a comunhão do servo para com o Senhor. É um relacionamento bilateral que, contudo, é dirigido pela graça de Deus. Este, apesar da indignidade do servo, não o abandona jamais. O resultado de um relacionamento como esse é descrito nos seguintes termos: “Pois estando [o Senhor] à minha direita não fracassarei” (kî mîmînî bal-’emmôt).
A terceira é a proteção pessoal (vv.9,10). Davi exulta em seu coração, pois, apesar dos frequentes ataques e tramas vindas de seus inimigos, sua certeza é: “Meu corpo repousará em segurança” (besarî yiskon labetah). É a confiança de que, pela proteção de Deus, seus inimigos não conseguiriam matá-lo. O v.10, segundo Pedro e Paulo, faz referência à ressurreição de Jesus (At 2.25-31; 13.35,36). Contudo, apesar de Davi tê-la profetizado, a aplicação desse texto ao seu contexto imediato corrobora a confiança na proteção divina demonstrada do v.9, dizendo: “Pois tu não deixarás minha alma ir para a sepultura, nem permitirás que teu servo veja o túmulo” (kî lo’-ta‘azov nafshî lish’ôl lo’-titten hasideka lir’ôt shahat).
A última é o rumo sábio (v.11). Finalmente, o salmista diz: “Tu me indicarás o caminho da vida” (tôdî‘enî ’orah hayyîm). Deus age aqui como um mapa, dando a conhecer ao que está perdido o caminho correto que o leva seguro e “vivo” ao seu destino. Ao mesmo tempo, para tanto, afasta-o do caminho oposto, o caminho da morte. Entretanto, não podemos reduzir Deus a um aparelho de localização por satélite. Sua atuação não é apenas marcar um caminho no mapa, mas guiar e conduzir o perdido, seu servo, por meio dele.
Mesmo depois de mais de dez anos de casado, não tenho grandes posses ou uma herança considerável. Entretanto, como Davi, também sou enriquecido pelas atuações de Deus que garantem minha segurança e eterna felicidade. Assim como para o salmista, o Senhor também é minha porção da herança. Nada tenho de maior valor que meu Salvador. Talvez seja por isso que me identifiquei tanto com o v.6. Ele diz – e eu também – “linda herança é a minha” (nahalat shafrâ ‘alay).
Pr. Thomas Tronco
Nenhum comentário:
Postar um comentário