Certa vez, entrando em um restaurante para jantar com minha esposa e minha filha, notei um grupo de pessoas conhecidas que também perceberam minha entrada. Com ouvido aguçado, escutei alguém do grupo dizer a outro que falasse mais baixo, pois eu estava próximo a eles. Qualquer que fosse o assunto, em lugar de intimidar o rapaz, esse alerta fez com que ele se virasse para mim – foi quando o reconheci – e dissesse em um tom alto de voz: “Não é verdade que isso está na Bíblia, Thomas?”. Ao perguntar a que ele se referia, a resposta foi: “... que em mulher não se bate nem com uma flor”. Diante do patente desconhecimento das Escrituras, só pude responder que, apesar de esse ditado popular não vir exatamente da Bíblia, eu realmente concordava com ele. Entretanto, o que me chamou mesmo a atenção foi perceber como as pessoas “acham” que sabem o que Deus revelou aos homens.
Davi sabia bastante sobre a revelação de Deus. Ele foi um salmista profícuo, o que quer dizer que passou uma boa parte do seu tempo dedicado à composição de salmos que, na verdade, são poesias e cânticos. É o autor que tem o maior número de composições no livro de Salmos. Entretanto, música e poesia parecem não ser as únicas habilidades da pena de Davi. Em termos de teologia ele abriu o caminho para grandes servos de Deus registrarem os aspectos mais profundos da revelação bíblica. Os apóstolos escritores citaram inúmeras vezes salmos de Davi e ensinaram à igreja dos seus dias – e dos nossos – diversos conceitos registrados pelo rei poeta um milênio antes deles.
O apóstolo Paulo, talvez o autor cujos escritos bíblicos sejam os de maior profundidade e importância teológica que temos, foi um dos escritores que citaram salmos davídicos em seus escritos. Um dentre os muitos temas abordados pelo apóstolo em suas cartas é aquele que fala sobre a própria revelação de Deus ao homem. Nesse sentido, Paulo apresenta dois meios que Deus utiliza para se revelar. O primeiro se dá por meio da Criação: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas...” (Rm 1.20). O segundo se dá por intermédio das Escrituras: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). Os teólogos denominam esse dois meios da revelação divina de “revelação geral” e “revelação específica”, respectivamente.
Toda vez que se fala em revelação, citam-se esses dois textos escritos por Paulo. Entretanto, pouco mais de um milênio antes de o apóstolo registrar tais conceitos, o rei Davi fez o mesmo, sem economizar tinta, no Salmo 19. Esse cântico é o registro tanto da grandeza da verdade revelada por Deus aos homens como dos meios utilizados pelo Senhor para se fazer conhecido a nós.
Assim, em termos de revelação geral, Davi afirma (v.1): “Os céus anunciam a glória de Deus e a abóbada celeste torna conhecida a obra das suas mãos” (hashamayim mesafferîm kevôd-’el ûma‘aseh yadayw maggîd haraqîah). Deve-se notar o paralelismo sinônimo entre “céus” e “abóbada celeste” e, também, entre a ação de “anunciar” e de “tornar conhecido”, pois, seguindo esse raciocínio, percebemos que estão em paralelo, também, a “glória de Deus” e a “obra das suas mãos”. Tal percepção é importante para entender que o que Davi quer dizer com glória está relacionado à obra da criação – não que esse seja o único aspecto glorioso no Senhor. Essa é uma declaração de que tanto o ato da criação foi revestido de glória como o próprio Criador é glorioso. É também a afirmação de que a natureza gloriosa de Deus e da sua atuação pode ser deduzida pela observação do Universo. Afinal, somente um Deus glorioso e perfeito pode produzir uma obra tão perfeita e magnífica. Por isso, completa (v.4): “Sua voz foi ouvida em toda a Terra e suas palavras, na extremidade do mundo” (bekal-há'arets yatsa’ qôlam ûbiqtseh tevel millêhem).
Quanto à revelação específica, aquela que se dá por meio das Escrituras, tema muito abordado pelo rei salmista – tome-se como exemplo o Salmo 119 –, seu julgamento é categórico (v.7): “A lei do Senhor é perfeita” (tôrat yehwâ temîmâ). A partir dessa afirmação, Davi apresenta quatro ações da revelação de Deus nas Escrituras sobre os homens (vv.7,8): Ela é “quem recobra a alma” (meshîvat nafesh), “reforça a sabedoria do ingênuo” (ne’emanâ mahkîmat petî), produz “as alegrias do coração” (mesammehê-lev) e “traz luz aos olhos” (me’îrat ‘ênayim). Alento, sabedoria, alegria e o caminho correto são as bênçãos produzidas por aquilo que Deus revelou por meio dos profetas e apóstolos.
Mas, há que se fazer uma ressalva. Davi não tem em mente nenhum tipo de superstição como exibir em casa uma Bíblia aberta acreditando que, assim, a casa fica protegida e abençoada. O que Davi ensina, nesse salmo, é que tais bênçãos veem da leitura e aplicação dos ensinos de Deus pelos seus servos e que, assim (v.11), “há muita recompensa em cumpri-los” (beshamram ‘eqev rav). O salmista olha para essa esperança de modo aplicativo e pessoal, afirmando o que espera para si pela obediência às Escrituras (v.14): “Serei íntegro e limpo de muitas transgressões” (’êtam weniqqêtî miffesha‘ rav). Guiado pela sabedoria de Deus, sua mais profunda aspiração é: “Sejam aceitáveis diante de ti, Senhor, as palavras da minha boca e a meditação do meu coração” (yihyû leratsôn ’imrê-pî wehegyôn livvî lepaneyka yehwâ).
Portanto, o servo de Deus só pode ser guiado pelo seu Senhor se tomar e ler suas instruções, seu mapa para nossa vida. Em lugar de tentar adivinhar o que a Bíblia ensina ou, pior, querer colocar sob sua autoria o que ela nem sequer diz, cada pessoa deve lançar mão do privilégio de ter acesso à vontade de Deus expressa nas Escrituras. O conhecimento salvador contido na mensagem graciosa da cruz de Cristo e a perfeita ética cristã moldada pelo próprio Senhor só são acessíveis ao homem por meio da Palavra de Deus. Afinal, ditados e provérbios populares podem ser interessantes, corretos e até úteis, mas jamais podem tornar os homens aceitáveis ao santo e justo Senhor.
Pr. Thomas Tronco
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