sexta-feira, 29 de abril de 2011

Como Agir Diante da Traição

Li na Internet uma história que me chamou a atenção. Ela contava que, em 1948, um dentista carioca viajou até uma pequena cidade do interior de Minas Gerais a fim de colocar em ordem negócios familiares. O caso é que sua irmã havia passado um tempo naquela cidade, onde fora seduzida pelo clérigo local. A intenção do jovem dentista era dar uma solução ao estado desonroso da irmã, convencendo o prelado a se casar com a moça. Como isso não aconteceu, o dentista executou o sedutor. Ele, obviamente, foi preso e houve grande comoção local. Percebendo a temperatura dos ânimos e como isso poderia influenciar o julgamento, a defesa conseguiu transferir o processo judicial para outro foro, onde alegou inocência do réu com base na tese de “legítima defesa da honra”.

Esse argumento, hoje rejeitado pela maioria dos juristas, conseguiu livrar o assassino da devida condenação que merecia em duas instâncias judiciais. Os jurados, na época, acharam que o réu, desonrado como foi, tinha o direito de matar a vítima. Apesar de surpreendente, esse não é um exemplo único de tal decisão. Esse absurdo foi efetivado vezes e mais vezes na história do Direito no Brasil, principalmente em casos de maridos traídos pelas esposas. Sob a desculpa de defender a honra ferida pela traição, muitos maridos, no passado, assassinaram suas esposas e saíram impunes.

A Bíblia também narra casos de traição. Um deles é pano de fundo da composição do Salmo 54. Nesse caso, a traição não foi entre cônjuges, mas entre israelitas da mesma tribo. Davi, o escritor do salmo, foi o alvo da traição e sua reação foi – e ainda é – um modelo para os servos de Deus. O contexto é apontado no título do salmo: “Quando vieram os zifeus e disseram a Saul: acaso não está Davi conosco?” (bebô’ hazzîfîm wayyo’merû lesha’ûl halo’ dawid mistater ‘immanû). Com essa menção fica fácil associar o salmo aos episódios narrados em 1Samuel 23 e 26.

Davi, nessa ocasião, estava fugindo de Saul para não ser morto. Enquanto fugia, ficou sabendo de uma invasão filisteia à cidade de Queila, no território de Judá, tribo de Davi. Apesar do risco e do medo de serem pegos, Davi e seus homens foram a Queila e a libertaram dos inimigos. Com a notícia de que Saul vinha para cercá-los, fugiram da cidade e rumaram para o deserto de Zife, a sudeste de Hebrom. A distância e a falta de informações do rei mantinham Davi e seus soldados seguros. Porém, os homens de Zife, israelitas que, como Davi, pertenciam à tribo de Judá (Js 15.24), quiseram aproveitar a oportunidade para, traindo seu irmão, obterem vantagens do rei (1Sm 23.19,20). A traição dos zifeus quase custou a cabeça de Davi (1Sm 23.25-28). O pior só não aconteceu porque os filisteus lançaram outro ataque e Saul teve de abandonar a caçada para combater os invasores.

Ao reagir à traição dos seus irmãos, Davi exemplifica quatro reações que o servo de Deus deve ter ao ser traído pelos homens. Em lugar de buscar vingança por causa da traição, a primeira reação de Davi o faz buscar a Deus por meio da oração humilde. Sem qualquer tipo de bravata ou juramento de ser capaz, por si mesmo, de se livrar dos inimigos, Davi recorre ao Senhor como alguém necessitado. A correta noção da sua situação e o conhecimento do poder de Deus dão o tom humilde da oração davídica (vv.1,2): “Salva-me pelo teu nome, ó Deus, e faça-me justiça com a tua força. Ouve a minha oração, ó Deus, e atenta para as palavras da minha boca” (’elohîm beshimka hôshî‘enî ûbigvôrotka tedînenî ’elohîm shema‘ tefillatî ha’azîâ le’imrê-pî). A insistência na súplica é um traço marcante da humildade de Davi por causa da incapacidade de lidar com os perigos que o cercavam. As rimas e os paralelismos fáceis de notar tornam essa oração um singular cântico que exalta o poder de Deus e ressalta a humildade do servo.

A segunda reação é o resultado coerente da primeira: a dependência de Deus. Entretanto, nesse aspecto, Davi não faz segredos. O que, normalmente, seria uma vergonha para alguns homens, visto ser a própria declaração de impotência, para Davi a dependência parece ser um ato cultual. Desse modo, ele demonstra com hombridade ter, de Deus, uma dependência pública. O salmista não quer orar em secreto e fingir diante de todos que consegue lidar com o peso das circunstâncias. Ele compõe um canto e nele declara a todos (v.4): “Eis que Deus é o meu protetor. O Senhor é o sustentador da minha alma” (hinneh ’elohîm ‘ozer lî ’adonay besomekê nafshî). Levando em conta que “minha alma”, nesse contexto, é uma sinédoque que aponta para Davi como um todo – a total dependência que Davi sente e declara ter em Deus é motivo de encorajamento para os servos de Deus terem menos coragem em si mesmos e mais confiança no Todo-poderoso.

A terceira reação, talvez a mais difícil delas, é manter a atitude justa. Seguindo a lógica dos antigos tribunais brasileiros, Davi podia se dizer ferido e traído, sentindo-se livre para agir como seu ímpeto mandasse. Poderia buscar vingança por meio de um ataque violento aos zifeus, com seu pequeno exército particular, explicando que ficou muito magoado com a traição. Podia até dizer que sua honra foi ferida. Mas ele não fez nada disso. Mesmo se sentindo traído por seu próprio povo a quem ele defendia com risco pessoal, Davi entregou o caso ao Senhor, o justo e sábio juiz capaz de julgar situações como essa. Por isso, afirma (v.5): “[Deus] fará o mal voltar aos meus inimigos. Faze-os calar por meio da tua fidelidade” (yashiwb hara‘ leshoreray ba’amitteka hatsmîtem).

Na verdade, esse é um traço marcante de Davi. Mesmo quando os homens eram desleais com ele, ele não era desleal com os traidores. Outro exemplo dessa atitude é a postura de Davi quando teve oportunidade de matar Saul, acabar com a perseguição injusta e, como prêmio adicional, ser feito rei sobre Israel. Nessa ocasião, Davi fez o que ninguém esperava. Quando seus amigos lhe sugeriram um ataque mortal a Saul, Davi lhes explicou que cabia ao Senhor vingar o mal: “Davi, porém, respondeu a Abisai: não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto” (1Sm 26.9,10). O próprio Jesus apresentou a mesma disposição de manter a justiça entregando os desmandos a Deus: “Pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente” (1Pe 2.23). Tanto Davi como Jesus rejeitariam a tese da “legítima defesa da honra” utilizada para acobertar uma vingança.

A quarta reação é a adoração voluntária ao Senhor. Ainda que o momento fosse delicado para o salmista e ele tivesse inúmeras preocupações e afazeres para manter a própria segurança e a dos seus homens, ele não deixa de pensar na devida adoração que deve a Deus. Diz ele (v.6): “Que eu te ofereça sacrifícios por iniciativa própria” (bindavâ ’ezbehâ-lak). Enquanto uma acusação frequente aos israelitas, principalmente aos sacerdotes, era a religiosidade vazia por meio de sacrifícios externos que não refletiam o íntimo dos ofertantes, Davi se apresenta com uma disposição totalmente diferente. Voluntariamente, ou “por iniciativa própria”, ainda que passasse por problemas, ele adoraria ao Senhor e lhe ofereceria o fruto do seu louvor. Nessa atitude ele deixa de fora qualquer tipo de barganha para tentar se beneficiar do poder de Deus. Exime-se, também, de cumprir mecanicamente preceitos que não traduzem seu desejo pessoal. Na verdade, ele não precisa de tais expedientes uma vez que realmente confia no Senhor e depende da sua bondade. Quando ele adora ao Senhor, o faz de coração, de todo coração.

Quem já passou dissabores e decepções com pessoas próximas, sabe o que significa o exemplo que Davi deixou. Quem conhece o ardor da indignação e da fúria que acomete aqueles que são trapaceados por pessoas em quem confiam, sabem o alento obtido pelo exemplo de um homem que agiu corretamente provando ser possível, pela graça de Deus, suportar a dor de uma situação como essa. E quem quer, de fato, servir a Cristo, certamente concorda que ver seu próprio mestre sendo exemplo de uma atitude tão radicalmente contrária ao mundo é um encorajamento incomparável. Que em momentos assim, palavras como “honra” nos lembrem do nosso dever para com Deus e não do nosso orgulho ferido. E, lembrando disso, que sejamos nós, discípulos de Jesus, aqueles que realmente promovem a “legítima defesa da honra”, a saber, a “honra” do nome do nosso Deus.

Pr. Thomas Tronco

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Dois Tipos de Igreja, Dois Tipos de Crente

Ouvi, algum tempo atrás, alguém me contar o conteúdo da conversa entre dois rapazes. Um deles disse ao amigo: “Minha igreja é o máximo! Como eu me sinto bem lá! Não há nada que me entristeça ou desaponte. Quando estou lá, é como se o mundo e a vida fossem perfeitos. Parece que estou no céu”.

O amigo ouviu esse relato e, após alguns segundos de silêncio em uma atitude reflexiva, respondeu: “Eu também gosto da minha igreja. Amo estar com meus irmãos e participar de todos os cultos e programações. Mas quando canto sobre a glória e a santidade de Deus e quando ouço a pregação da Palavra, não consigo parar de pensar em quanto estou longe daquilo que eu deveria ser e em quanto ainda eu preciso crescer no caráter cristão. Em alguns momentos eu fico desapontado. Mas meu desapontamento é comigo mesmo e com o pecado que pratico. Sofro por causa dele. Às vezes, até choro arrependido. Porém, a esperança de um dia viver com Deus, livre de defeitos, é o que me encoraja a continuar servindo cada vez mais a Cristo e a buscar a santidade na minha vida. Quando estou na igreja, não me sinto no céu... eu desejo chegar logo no céu!”.

Quem me contou essa história, também me explicou que esse segundo jovem pertence a uma igreja séria que enfatiza o ensino bíblico. Já o primeiro rapaz pertence a uma dessas comunidades voltadas ao público jovem cuja ênfase está na música e em programações “legais”, enquanto as Escrituras são tratadas com superficialidade por “pastores” sem preparo teológico. Com tal explicação, tudo ficou mais claro.

Além da óbvia constatação de que a igreja que menospreza a Bíblia se desvia dos caminhos e dos propósitos do Senhor, outra coisa me deixou pensativo: “Como pensam os membros das igrejas bíblicas? Será que todos pensam como o segundo jovem?”. Temo que a resposta não seja tão encorajadora.

Enquanto muitos crentes permanecem tratáveis diante das Escrituras e do pastoreio dos seus líderes, uma nova “raça” está se cristalizando nas fileiras eclesiásticas. Trata-se de um grupo que trouxe para dentro da igreja o individualismo dos nossos dias, de modo a não terem, de fato, comunhão com o corpo de Cristo. Também carregam os princípios do “Código de Defesa do Consumidor” não cogitando qualquer dever que tenham como membros de uma igreja, mas apenas os direitos que têm e o modo como devem ser respeitados pelos outros. Para piorar, importam do mundo uma noção tosca de que a igreja deve adulá-los a fim de não perdê-los, como se fossem fregueses de uma grande loja.

Tudo isso é estranho ao ensino bíblico. A igreja, para o crente, deve ser alvo da sua mais carinhosa atenção e cuidado (2Co 11.28), das suas orações constantes (1Ts 3.10) e do seu mais sincero amor (Ef 1.15, Cl 1.4). O crente deve ter a nítida convicção de que, como noiva de Cristo, a igreja pertence ao Senhor e, por isso, há um modo definido de ela se comportar (1Tm 3.15) no qual ela se submete ao seu Senhor (Rm 7.4-6; Ef 5.24) para produzir glória ao seu nome (Ef 3.21). Apesar de características tão específicas e marcantes para o conjunto de crentes que chamamos de “corpo de Cristo” (Ef 1.22,23), à semelhança de um corpo humano, a igreja também é formada de partes individuais (Rm 12.4,5). Assim, falar sobre as características da igreja é o mesmo que falar sobre o papel e a responsabilidade de cada crente em si. A igreja é o que seus membros são. Para termos uma igreja verdadeira, sadia e bíblica, precisamos ser, cada um de nós, crentes verdadeiros, sadios e bíblicos.

Por fim, todos nós devemos nos fazer duas perguntas: “Que tipo de igreja é a minha?” e “que tipo de crente sou eu?”.

Pr. Thomas Tronco

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os Pontos Comuns da Iniquidade e da Justiça

Como cirurgião-dentista em tempo parcial, ainda atendo pacientes em meu consultório. Além de utilizá-lo como um tipo de gabinete pastoral, o contato com as pessoas cria sempre boas oportunidades. Dentre os pacientes que atendo, há dois que me confundem. São dois gêmeos muito parecidos. No começo, eu não sabia diferenciá-los. Mesmo depois de atendê-los, eu me confundia vendo-os na sala de espera. Entretanto, com o passar do tempo e com o decorrer das sessões, comecei a notar algumas diferenças físicas neles, daquelas que só é possível ver depois de conviver certo tempo. Mas as diferenças que realmente me ajudam a diferenciá-los têm relação com a personalidade de cada um. Apesar de serem quase idênticos, eles me cumprimentam de modo diferente e têm o humor completamente adverso. Um deles é animado, engraçado e gozador, enquanto o outro é mais introspectivo, sério e atento. Quando presto atenção a essas características, fica mais fácil diferenciá-los.

O livro de Salmos também tem irmãos gêmeos. Mas, como todos os gêmeos, eles guardam características singulares. Refiro-me aos salmos 14 e 53. A primeira semelhança entre eles é a autoria: ambos foram compostos por Davi. Mas essa está longe de ser a única coisa que os aproxima. Na verdade, o texto deles é extremamente parecido. As semelhanças entre os quatro primeiros versículos do Salmo 14 e os cinco primeiros versículos do Salmo 53 são tão grandes que nos parecem ser o mesmo salmo. Uma diferença mais substancial se dá apenas no final de cada um. Eles podem, com toda razão, ser chamados de “salmos gêmeos”.

Porém, não são tão parecidos a ponto de ser inútil a presença dos dois no saltério. Certamente, se um fosse mera cópia do outro, poderíamos ter apenas 149 capítulos no livro de Salmos ou ter, até mesmo, um salmo a mais que não foi incluído no cânon. Mas o Deus soberano que nos deu seu ensino por meio das Escrituras não fez nada disso. Ele, munido da sabedoria sem limites que somente Deus tem, nos deu os dois salmos, cada um com seu próprio propósito, cada um com seu próprio benefício. Portanto, para não repetir o que já foi dito a respeito do Salmo 14, ao comentarmos o Salmo 53 daremos especial atenção a algumas diferenças entre ele e seu irmão gêmeo.

A primeira diferença notável, excetuando o título mais longo do Salmo 53, está presente no v.1 de cada salmo, na palavra utilizada para se referir ao pecado do homem tolo. Enquanto o Salmo 14 diz que ele pratica a “má conduta” (‘alîlâ), o 53 chama tais atitudes de “iniquidade” ou “injustiça” (‘awel). A qualificação mais rigorosa da conduta ruim do ímpio demonstra que Deus vê todo pecado como uma ofensa capital à sua própria santidade. Tais palavras, associadas ao verbo que as precede em ambos os casos (ta‘av), cujo significado no grau em que se encontra (hiphil) é “proceder de modo abominável”, atesta o fato de que Deus não fica indiferente ou impassível diante do mal. O pecado causa uma reação em Deus que o move, no devido tempo, a promover a vingança contra o mal. Toda iniquidade que não for tratada pela graça e pelo perdão de Deus, por meio da obra de seu filho Jesus Cristo, será inevitavelmente julgada e punida no tribunal daquele que não suporta a maldade, nem convive com pecadores endurecidos.

Algo que cuja forma difere nos dois salmos é que o Senhor é sempre chamado de Deus (’elohîm) no Salmo 53, enquanto, na maioria das vezes, é chamado no 14 de Javé (yehwâ). Apesar disso e de uma pequena diferença de palavras na introdução do texto do Salmo 14.3 e do 53.3, onde o sentido permanece inalterado, a próxima diferença notável se dá realmente no Salmo 14.4 e na primeira metade do 53.5. O primeiro diz: “Então eles temerão de pavor, pois Deus está com gente justa” (sham pahadû pahad kî-’elohîm bedôr tsadîq). Seu par, no capítulo 53, completa dizendo: “Então eles temerão de pavor de coisas que não são temíveis, pois Deus esparrama dos ossos daquele que te cerca” (sham pahadû pahad lo’-hayâ pahad kî-’elohîm pizzar ‘atsmôt honak). Ambos predizem um terrível temor por parte dos injustos, mas cada um dá uma razão para tanto.

Uma delas é a indiscutível predileção de Deus pelas pessoas cujas atitudes são justas devido à ligação que têm com o Senhor. Tal predileção toma forma de ações práticas quando os que pertencem a Deus são perseguidos – ou cercados, conforme diz o texto – pelos perversos. Esse realmente é um motivo de terror para os inimigos de Deus. O desenrolar é que o pânico, no momento em que Deus se levanta para defender os seus, é tamanho que seus inimigos temem até as coisas inofensivas. O motivo não é nenhum tipo de paranoia, mas saber pela triste experiência o que acontece com aqueles contra quem Deus se levanta. O texto traz uma figura muito forte ao dizer que esses serão destroçados e seus ossos serão espalhados.

A sequência – o Salmo 14.6 e a segunda parte de 53.5 – contém mais diferenças que se complementam na mensagem transmitida pelos salmos gêmeos. No primeiro desses textos, o salmista se dirige aos injustos e lhes diz: “Vocês envergonham o conselho dos humildes, entretanto o Senhor é o refúgio deles” (‘atsat-‘anî tabîshû kî yehwâ mahsehû). A zombaria que os injustos promovem volta para eles no Salmo 53.5, pois é dito ao justo: “Tu os envergonharás, pois Deus os rejeitará” (hebishotâ kî-’elohîm me’asam). O paralelismo é muito claro. Os perversos, que causavam vergonha nos humildes, serão, como castigo, envergonhados. E isso porque Deus, que é o refúgio dos humildes e os protege, rejeita os ímpios.

Ao olhar como as diferenças entre os Salmos 14 e 53 complementam a ideia de que Deus é o protetor dos que lhe pertencem e é o vingador do mal dos perseguidores injustos, entendemos porque esses dois salmos coexistem no saltério. O resultado prático também não poderia ser mais claro: a necessidade de submissão e contrição dos rebeldes diante do soberano Senhor e de adoração e gratidão por parte daqueles por quem o Senhor luta. E que ninguém se deixe enganar por ditos que fazem crer que todos os homens são iguais para Deus. Mesmo parecidos por fora, até mesmo como pessoas gêmeas, por dentro seus corações são diferentes e o Senhor os conhece, sabendo quem, dentre eles, tem Jesus como seu refúgio e salvação.

Pr. Thomas Tronco

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A Obra e o Destino dos Ímpios

Todo o País ficou chocado com o massacre promovido por um atirador que atingiu e matou várias crianças em uma escola em Realengo, Rio de Janeiro, tirando sua própria vida após o crime. Além do choque de saber que muitas crianças inocentes e indefesas foram feridas, enquanto outras foram mortas, foi tenebroso ver os vídeos gravados pelo próprio assassino falando sobre o que faria. Pelas gravações, é possível ver claramente a premeditação do ato e os motivos fúteis dados pelo criminoso para a barbárie. Para mim, contudo, houve algo mais marcante. Entre as explicações confusas e sem nexo do assassino e as recomendações de como tratar seu corpo morto – como se fosse um tipo de herói –, o que me atingiu foi vê-lo desfrutar da ideia do que viria a fazer. Como não notar a vanglória com que explicava suas intenções? E como é possível, para nós, não nos enojarmos e não nos revoltarmos vendo algo desse tipo?

Há, na mídia, muitos outros casos de criminosos maldosos que se vangloriavam das perversidades que cometeram. Conheço um assassino, porém, que nunca apareceu na televisão. Seu nome era Doegue e ele é o assunto do Salmo 52, escrito pela pena de Davi, antes de ser rei em Israel. Davi, na verdade, estava fugindo de Saul para não ser morto devido ao ciúme que o rei tinha dele. Nessa fuga, Davi, sem explicar a razão verdadeira, se hospedou na casa do sumo sacerdote Aimeleque, em Nobe – local do tabernáculo na época – e, conseguindo provisões, partiu para um tipo de exílio. Nessa ocasião, um oportunista, empregado como pastor de ovelhas a serviço de Saul (1Sm 21.7), aproveitou para tentar subir de posto diante do rei. O que ele fez, descrito em 1Samuel 22.9,10, é também expresso no título do salmo: “Quando Doegue, o edomita, relatou a Saul dizendo-lhe: Davi esteve na casa de Aimeleque” (bebô’ dô’eg ha’adomî wayyagged lesha’ûl wayyo’mer lô ba’ dawid ’el-bêt ’ahîmelek).

O resultado foi que Saul, já enfurecido e fora do bom uso da razão, quis vingança contra Aimeleque e toda a sua casa. Ordenou que sua guarda os matasse, mas eles se negaram a fazê-lo. Desse modo, o autor da chacina, sob as ordens do rei, foi o próprio Doegue (1Sm 22.11-19). O único sobrevivente da casa de Aimeleque foi Abiatar, o qual fugiu para Davi e foi por ele acolhido e protegido (1Sm 22.20-23). Por meio dele Davi tomou conhecimento do ocorrido e, posteriormente, escreveu o salmo em questão. Nele, temos a oportunidade de notar certas características do homem que se vangloria do mal que faz.

A primeira delas é a completa falta de temor a Deus. O início do salmo é endereçado ao próprio Doegue. Davi lhe pergunta (v.1): “Por que te vanglorias na maldade, ó poderoso?” (mah-tithallel bera‘â haggibôr). A referência a Doegue como um homem poderoso pode tanto ser uma referência ao prestígio que ele agora tinha na corte de Saul por causa do seu ato traiçoeiro, como – o que é mais provável – ser uma acusação da tolice de Doegue se achar alguém grande por fazer o mal à vista de Deus. Essa segunda possibilidade fica mais clara quando olhamos a frase pela qual Davi contrapõe sua pergunta: “A fidelidade de Deus está presente todos os dias” (hesed ’el kal-hayyôm). O propósito desse contraste é evidenciar a loucura da ação de Doegue movida pela completa falta de temor ao justo e soberano Senhor. Em outras palavras, seria Davi perguntando ao malfeitor: “Como é que você age assim e ainda se orgulha disso, sabendo que Deus é fiel para sempre e que vai puni-lo por isso?”. Entretanto, tal raciocínio nem sequer fazia sentido para o ambicioso e maldoso pastor do rei.

A segunda característica é a promoção do prejuízo alheio. Para um homem assim, ninguém pode ser obstáculo para a concretização dos seus desejos. Sob esse modo de ver a vida, as pessoas são descartáveis e, assim, podem ser prejudicadas sem que o homem perverso se sinta constrangido por suas ações. Por isso, Davi se dirige a Doegue mais uma vez e diz (v.2): “Como uma navalha afiada, a maldade habita na tua língua, ó mentiroso” (hawwôt tahshov leshôneka keta‘ar meluttash ‘oseh remiyyâ). Certamente, Davi tem em mente o mal que Doegue produziu a Aimeleque e à sua família sem sentir qualquer remorso. O relato do livro de 1Samuel mostra que Davi não informou Aimeleque as suas reais condições diante de Saul. Para o sacerdote, Davi estava em uma missão real (1Sm 21.2), de modo que, ajudar Davi era servir à coroa. Aimeleque realmente não fez conscientemente nada que fosse contrário a Saul. Entretanto, não foi isso que Doegue fez Saul saber. Ele, que foi testemunha do que ocorreu em Nobe (1Sm 21.7), escolheu que verdades contar – ou manipular – a fim de demonstrar ao rei sua utilidade, mesmo que isso custasse a vida de homens inocentes.

A terceira característica é o apego natural à maldade. A atitude destruidora de Doegue parece não ter sido apenas um fruto de uma oportunidade, mas o ato de externar algo que se dava em seu íntimo. Davi não apenas acusa seu ato pernicioso e assassino; não somente aponta para sua consciência entorpecida. Davi denuncia o que passa no próprio coração de Doegue. Utilizando-se do verbo “amar” (’ahav) para se referir às escolhas feitas pelo traidor, Davi nos desvenda o apego daquele homem ao mal, pelo qual agiu naturalmente ao fazer suas péssimas escolhas (vv.3,4): “Tu amaste o mal mais que o bem; a mentira mais que as palavras justas; amaste todas as palavras de destruição, ó língua enganosa” (’ahavta ra‘ mittôv sheqer middaber tsedeq selâ ’ahavta kal-divrê-bala‘ leshôn mirmâ). Para Doegue não foi grande coisa mentir sobre a atuação do sumo sacerdote no episódio com Davi, nem, tampouco, fazer o que nem mesmo a guarda de Saul quis fazer, a saber, assassinar os sacerdotes do tabernáculo de Deus. O assassino naturalmente preferia o que era mal.

Depois de descrever o tipo de homem que Doegue era, Davi passa a falar sobre as consequências de agir como ele (v.5): “Também Deus te derrubará para sempre” (gam-’el yittatseka lanetsah). Se o que o traidor queria era ascender à corte de Saul, o resultado seria o movimento contrário. A ascensão temporária se tornaria uma queda permanente. E mais: “[Deus] te arrastará e te arrancará da [tua] tenda e te desarraigará da terra dos vivos” (yahteka weyissahaka me’ohel weshereshka me’erets hayyiym). Deus faz recair sobre o malfeitor seus próprios atos, pois, assim como os sacerdotes foram tirados da “tenda” do Senhor – o tabernáculo em que serviam – e foram mortos, o mesmo aconteceria com Doegue. E, finalmente, o desejo de ser respeitado pelas pessoas por causa dos favores do rei seria também frustrado pelo resultado diametralmente oposto (v.6): “E os justos verão e temerão e dele zombarão” (weyir’û tsadîqîm weyiyra’û we‘alayw yishaqû). Na verdade, o texto não diz apenas que os justos zombarão, mas que também dirão dele na sua queda (v.7): “Eis o homem que não faz de Deus seu protetor, mas que confia nas suas muitas riquezas e que é forte na sua maldade” (hinneh haggever lo’ yashîm ’elohîm ma‘ûzzô wayyivtah berov ‘oshrô ya‘oz behawwatô).

Antes de encerrar o salmo, Davi se apresenta como um contraste em relação à Doegue. Enquanto este é como uma planta que será “desarraigada da terra dos vivos” (v.7), Davi diz de si mesmo (v.8): “Mas eu sou como uma oliveira vigorosa na casa de Deus” (wa’anî kezayit ra‘anan bebêt ’elohîm). Além de se comparar a uma planta em plena produção de frutos, Davi se refere a uma planta que pertence a Deus e que, desse modo, é cuidada por ele e dá fruto para ele. Esse é o modo de o salmista se distanciar da figura horrenda do homem mal e de demonstrar que é um servo de Deus pela graça que dele recebe. Tal sentido de dependência do Senhor em seu benefício se vê nas palavras subsequentes: “Eu confio na fidelidade de Deus para todo o sempre” (batahtî behesed-’elohîm ‘ôlam wa‘ed). Por isso, diferente do malfeitor que buscava a alegria em uma busca inescrupulosa, Davi se mostra agradecido a Deus, mesmo na situação de fuga em que vivia, confiado no caráter divino (v.9): “Eu confiarei no teu nome, pois és bondoso perante os teus fiéis” (’aqawweh shimka kî-tôv neged hasîdeyka).

Realmente, os ímpios agem como loucos, sem temor a Deus e sem escrúpulos na busca do que desejam. Usam sua boca como armas mortais e não se importam com os prejuízos que causarão nas pessoas ao redor. Quanto a nós, que fomos retirados desse mundo perdido e desse sistema egoísta, devemos, tanto quanto pudermos, nos afastar de tudo que nos faça parecer com homens como Doegue. E, chocados com atuações malévolas como à do assassino do Rio de Janeiro, devemos espalhar a mensagem do evangelho de Jesus Cristo, sabendo que somente ele pode transformar pessoas assim em “oliveiras vigorosas da casa de Deus”. Caso contrário, serão como o próprio atirador do Rio de Janeiro que tinha o arrogante sonho de ser sepultado como herói, conduzido, segundo disse, por mãos “puras” e com um lençol branco, mas que, no final, foi enterrado em uma cova rasa, com autorização judicial, sem a presença de nenhum parente, amigo ou qualquer outro acompanhante.

Pr. Thomas Tronco

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Calvinistas Evangelizam? (Parte 4)

As provas históricas do empenho evangelístico dos calvinistas são inumeráveis. Porém, para concluir esse assunto, é suficiente apontar somente mais dois personagens: George Whitefield e Charles Haddon Spurgeon, sem dúvida os maiores pregadores de todos os tempos, ambos fervorosos expoentes da fé reformada, com sua ênfase na doutrina da predestinação dos santos (Informações mais completas sobre George Whitefield podem ser obtidas em Lloyd-Jones, D.M. Os Puritanos: suas origens e sucessores. São Paulo: PES, 1993).

George Whitefield nasceu em Gloucester, na Inglaterra, em 1714, e morreu em Newbury Port, nos Estados Unidos, em 1770. Ele viveu menos de sessenta anos, mas dificilmente a história poderá mostrar um homem mais zeloso no trabalho de proclamação das Boas Novas aos perdidos. De fato, Whitefield foi o maior pregador da Inglaterra no século 18 e, certamente, um dos mais notáveis evangelistas de todos os tempos. Com certeza, ele foi o principal líder do Grande Avivamento evangélico que varreu a Inglaterra há mais de duzentos anos.

Whitefield começou a pregar em 1736 e, já no ano seguinte, era capaz de reunir grandes multidões em Londres dispostas a ouvi-lo. A ele cabe a honra de ter sido o primeiro evangelista da igreja moderna a pregar ao ar livre, rompendo antigas tradições eclesiásticas em prol da expansão da fé. Whitefield usou essa estratégia pela primeira vez em 1739, motivado pelas terríveis informações que lhe chegaram acerca da vida depravada dos trabalhadores das minas de carvão que viviam numa vila perto de Bristol. A princípio ele pregou ao ar livre para um grupo de cem homens daquela vila, mas seu impacto foi tão grande que logo o número passou para 5 mil, superando mais tarde os 20 mil ouvintes. Aquelas pessoas nunca tinham entrado numa igreja e, mesmo cansadas e sujas em virtude do trabalho nas minas de carvão, não iam para casa, preferindo ficar de pé ouvindo a pregação de Whitefield.

A partir de então e até o fim da vida, Whitefield se dedicou à pregação em lugares abertos, alcançando dezenas de milhares de pessoas tanto na sua terra natal como na Escócia, onde esteve catorze vezes. A partir de 1738, Whitefield fez também diversas viagens aos Estados Unidos a fim de pregar o evangelho ali.  Ele morreu durante sua sétima visita àquele país. Sua coragem em atravessar o oceano treze vezes em suas idas e vindas à América, enfrentando todos os perigos que essa viagem representava no século 18, mostra o zelo missionário desse pastor calvinista que, em 34 anos de ministério, pregou cerca de 18 mil sermões!

Proclamando suas mensagens ao ar livre ao longo de toda a vida, Whitefield enfrentava qualquer situação, mesmo as mais difíceis. Frio, calor, chuva e neve, nada disso o impedia de anunciar a Palavra às multidões que, também sob essas condições se ajuntavam para ouvi-lo. Ele pregava cerca de seis vezes por dia e fez isso por mais de três décadas! Não tinha descanso no trabalho, submetendo seu corpo a severas tensões. Foi por isso que, extremamente exausto, após árduos esforços para pregar uma última vez, faleceu em Newbury Port, Massachusetts, com apenas 56 anos de idade.

Ninguém mais do que George Whitefield provou como a fé calvinista move o crente ao evangelismo. Sendo árduo defensor da doutrina da eleição soberana de Deus, ele foi um evangelista incomparável, superando todos do seu tempo no nobre trabalho de alcançar os escolhidos do Senhor. Whitefield pregou para a aristocracia inglesa, para os homens humildes do campo e das minas e para as crianças dos orfanatos, tanto em sua terra natal como em regiões distantes dali. A fé reformada não o desencorajava. Muito pelo contrário. Foi essa fé que se constituiu na base de todo o seu empenho, por décadas a fio, até a morte. Hoje, os que dizem que calvinistas não evangelizam, devem estudar a vida de George Whitefield. Isso, certamente, os fará mudar de opinião!

(Continua)

Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria

A Mudança Necessária ao Servo de Deus

Recentemente, assisti com minha filha, na televisão, ao filme Free Willy 3: O Resgate (Warner Bros.: 1997). Assim como nos filmes precedentes, o enredo expõe o bom relacionamento entre Willy, uma baleia orca, e o menino Jesse – nesse filme, já rapaz. Uma diferença, porém, no tema do terceiro filme da série é que, enquanto no primeiro se defende a liberdade desses grandes animais que vivem em cativeiro, o filme mais recente denuncia a crueldade da caça ilegal das baleias. Para tanto, há um “vilão”, caracterizado na forma de um caçador de baleias, que tenta, com insucesso, fazer com que seu pequeno filho tome gosto pelo ofício familiar. Mas a amizade que o filho cria com Willy e com Jesse, associado ao fato de o caçador ter sua vida salva pela baleia orca, faz com que, no final, o vilão mude radicalmente seu modo de ver os animais e abandone sua profissão. O objetivo do filme é promover uma mudança de atitude nas pessoas para que ajudem a preservar as baleias.

O Salmo 51, um dos sete salmos penitenciais (6, 32, 38, 51, 102, 130, 143) – provavelmente o mais famoso deles –, é um exemplo ideal do que significa “mudança de atitude”. Seu escritor, o rei Davi, sofre uma grande transformação que merece ser observada com atenção. A mudança pode ser percebida não apenas no corpo do texto, mas no contexto indicado pelo título do salmo: “Ao dirigente: Cântico de Davi, em vindo a ele Natã, o profeta, depois de ter [Davi] se deitado com Bate-Seba” (lamnatseah mizmôr ledawid bebô’-’elayw natan hannavî’ ca’asher-ba’ ’el-bat-shava‘). Essa introdução nos remete a 2Samuel 11 e 12, onde são narradas as atitudes de Davi como pecados singulares em sua vida. Esses capítulos mostram uma sequência drástica de pecados cada vez piores que começam com a cobiça da mulher de um amigo, seguido pelo adultério ao tomá-la em seu leito.

O que já era trágico, piora com a notícia de que a mulher, Bate-Seba, ficou grávida. Davi, então, chama Urias, o marido, do campo de batalha e tenta fazê-lo ir para sua casa a fim de parecer que era dele o filho que a mulher esperava. Urias não atendeu à sugestão do rei que, em uma nova tentativa, o embriagou a fim de convencê-lo. A falta de sucesso fez Davi lançar mão de uma opção extrema, pela qual, deliberadamente, causou a morte do marido traído. Com sua morte, Davi desposou a mulher gestante e acreditou que tudo permaneceria em segredo. A farsa só teve fim quando o profeta Natã, usando de um estratagema, fez o rei pronunciar uma condenação sobre si mesmo e o repreendeu duramente pelo pecado.

Em outras ocasiões narradas nas Escrituras, como em 1Samuel 15.10-31, repreender um pecado do rei promoveu reações raivosas do monarca. Mas, com Davi, o resultado foi bem diferente. Houve “mudança de atitude” por parte do rei pecador. Isso torna o episódio – e esse salmo – um material importante a fim de aprendermos sobre o arrependimento e o perdão de pecados. O Salmo 51, nesse sentido, nos mostra cinco implicações do pecado na vida do homem que quebranta seu coração diante de Deus.

A primeira implicação é a consciência da condição pecadora do homem. Davi, logo após ser admoestado por Natã, fez o que cabe a todo homem que busca o Senhor ao se ver em pecado: reconhecer seu erro em lugar de racionalizar a situação ou inventar desculpas para fingir que não pecou. Davi diz (v.4): “Contra ti, contra ti somente, eu pequei e fiz o que é mal aos teus olhos” (leka levaddeka hata’tî be‘êneyka ‘asîtî). Ao dizer que pecou somente contra Deus, a ideia não é sugerir que não pecou contra Bate-Seba ou, pior, contra Urias. A intenção é mostrar que seus atos de pecado feriram, primeiro, o seu relacionamento com Deus. O pecado é pecado porque Deus é santo e contrário ao mal. Isso, obviamente, desarma qualquer pessoa que peque contra outrem ou que mantenha mágoas dos irmãos, que, ao mesmo tempo, queira afirmar que mantém sua comunhão com Deus.

Davi desiste de se defender desse modo falso porque, ao ser acusado de pecado, ele se lembra que sua pecaminosidade não pode ser negada, visto que a tem desde o nascimento (v.5): “Eis que eu nasci com iniquidade e minha mãe me concebeu com pecado” (hen-be‘awon hôlaletî ûbehete’ yehematnî ’immî). Tal afirmação levanta a questão da transmissão do pecado. Segundo afirma o salmista, o pecado não está presente no homem apenas quando, conscientemente, ele realiza um ato de pecado, como diz a linha doutrinária conhecida pelo termo “pelagianismo”. Segundo diz o texto, desde a concepção, o pecado já está presente nos seres humanos. Essa realidade se perfaz desde os nascimentos dos filhos do primeiro casal e, a partir de então, aos filhos de todos os casais, visto que todos são pecadores e ninguém há sem iniquidade (Rm 3.10-12; 5.12). Enquanto as Escrituras dizem que Adão e Eva foram feitos “à imagem de Deus” (Gn 5.1,2), seu pecado provocou uma transformação tão profunda em sua natureza que seus filhos, a partir de então, não nasceram à imagem de Deus, mas à imagem de Adão, homem pecador que era (Gn 5.3).

A segunda implicação é a necessidade do perdão e da restauração. Vendo sua condição pecaminosa, o homem olha para seus atos de pecados e não os acha naturais, mas transgressões que ofendem o santo Deus. Por isso, busca o perdão divino e uma mudança que o faça, novamente, ter comunhão plena com o Senhor. A exemplo de Davi, ele roga (vv.1,2): “Apaga as minhas culpas, lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado” (meheh pesha‘ay harbeh kabbesenî me‘aônî ûmehatta’tî taharenî).

A terceira implicação é o sofrimento como consequência do pecado. Para o servo de Deus o pecado é fonte de dor por dois motivos. O primeiro é porque ele causa consequências que fazem sofrer (Tg 1.15). O segundo, porque o pecador perde seu contato próximo com o Senhor, o qual não suporta o pecado e não fica alheio a ele (Is 59.1,2). No caso de Davi, por ocasião do pecado com Bate-Seba e a triste sequência de pecados que resultou na morte de Urias, o sofrimento não foi diferente, mesmo antes de ser Davi repreendido pelo profeta Natã. Podemos notar essa realidade pelo modo como Davi diz se sentir antes de confessar sua maldade (v.8): “Faze-me ouvir regozijo e alegria e, assim, se alegrarão os ossos que tu trituraste” (tashmî‘enî sasôn wesimhâ tagelenâ ‘atsamôt dikîta). Davi não teve fraturas múltiplas. Ao dizer que teve seus ossos triturados ou moídos, ele se refere ao sofrimento que sentia por ter pecado. A tristeza pelo pecado era tanta que lhe parecia que seus ossos estavam esmigalhados. Por isso o pedido pela restauração da alegria. O fato é que o pecado causa sofrimento a quem quer seguir a Deus.

A quarta é a certeza de restauração para quem se arrepende. Apesar de conhecer seu pecado (v.3), Davi sabia que, com o coração contrito, podia recorrer a Deus a fim de ser perdoado e restaurado. Ele conhecia o caráter transformador do Deus a quem servia. Assim, demonstra confiança em sua oração quando pede que Deus lhe execute uma mudança profunda (vv.10,12): “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova no meu íntimo um espírito estável... Recobra em mim a alegria da tua salvação e mantém em mim um espírito enobrecido” (lev tahôr bera’-lî ’elohîm werûah nakôn hadesh beqirbî... hashîvâ lî sesôn yish‘eka weruah nedîvâ tismekenî). Com os benefícios das respostas da oração que dirige a Deus, o salmista não apenas é perdoado, mas volta à ativa como um servo útil na obra de Deus.

A última implicação é a possibilidade de adorar ao Deus perdoador. Ninguém deve buscar o pecado para, perdoado pelo Senhor, mostrar a todos a graça de Deus que supera a maldade do servo (Rm 6.1,2). Entretanto, o fato de sermos perdoados deve, sim, ser motivo tanto de louvor a Deus como de testemunho público do amor do Senhor pelos que lhe pertencem. É por isso que Davi, mesmo sabendo do seu pecado e da necessidade que tinha de perdão e restauração que só podiam vir de Deus, se antecipa e anuncia o que fará (v.13): “Eu ensinarei aos rebeldes os teus caminhos e os pecadores se voltarão para ti” (’alammedâ posh‘îm derakeyka wehatta’îm ’eleyka yashûvû). O efeito de tal anúncio parece encontrar seu par na vida dos israelitas de aí por diante (vv.18,19).

Apesar da antiguidade do salmo, sua atualidade e utilidade não podem ser, de modo algum, desprezadas. O pecado, tanto no mundo antigo como no moderno, quebra a comunhão do servo com seu Deus e causa sofrimento ao que peca e a quem é alvo do ato do pecado. Temos de, como igreja de Deus, recorrer sempre à promessa de perdão e de purificação por meio da obra redentora do Senhor Jesus Cristo (1Jo 1.9). Ninguém sabe tão bem o valor de tal promessa como aquele que quer ser fiel a Deus. De coração ele busca o perdão, já que (v.17) “sacrifícios a Deus são o espírito quebrantado; Deus não despreza um coração quebrantado e abatido” (zivhê ’elohîm rûah nishbarâ lev-nishbar wenidkeh ’elohîm lo’ tivzeh).

Pr. Thomas Tronco

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Culto Verdadeiro e o Culto Inútil

Na cidade de Evanston, Illinois (Estados Unidos), certa vez se viu um anúncio, no mínimo, curioso. Ele dizia: “Nós queremos que você se junte à nossa fé como um ministro ordenado com o grau de doutor em divindades”. No anúncio, eles explicavam se tratar de uma denominação de rápido crescimento, que estava à procura de novos membros que acreditavam, como eles, que todo homem deveria procurar a verdade da sua própria maneira, por quaisquer meios que considerem corretos. Como vantagens oferecidas para o cargo de ministro ordenado, o anúncio afirmava que os portadores do título poderiam iniciar suas próprias igrejas e obter isenção de impostos; poderiam realizar casamentos e ter todas as prerrogativas eclesiásticas. Além do mais, dizia o texto, se os candidatos desejassem ser missionários daquela denominação, obteriam grandes lucros, além de confortos como transportes, hotéis e presença em teatros. Tudo isso pela “bagatela” de cem dólares pelo curso que, segundo se afirmava, era válido e reconhecido em qualquer lugar dos Estados Unidos.

Infelizmente, esse tipo de anúncio não é exclusividade do Estado americano de Illinois. Eu mesmo já vi algo parecido no Brasil. Nesses casos, a ousadia de afirmar que o curso confere o grau de doutor em divindades demonstra, logo de cara, o caráter enganoso da proposta. Eu conheço algumas pessoas que têm o grau de doutorado em Teologia e posso afirmar que não o obtiveram por meio de um cursinho de cem dólares, mas passando décadas das suas vidas em seminários e bibliotecas e, também, debruçados sobre suas escrivaninhas, lendo e escrevendo milhares de páginas por ano. Posso também dizer, conhecendo verdadeiros doutores, que é muito fácil distingui-los dos falsos. Esse falso curso de doutorado, em Evanston, não consegue resistir a uma breve conversa entre seus “falsos doutores” e os verdadeiros estudantes das Escrituras que possuem, de fato, o referido grau de ensino.

O Salmo 50, de autoria de Asafe, também traça uma nítida distinção entre o “verdadeiro” e o “falso”. Nesse caso, o objeto de avaliação não é um título educacional, mas o coração das pessoas que se dizem adoradores de Deus. O próprio Senhor é quem, no salmo, os distingue e se manifesta diante da falsidade dos seguidores nominais. O salmo parece ter sido escrito em um contexto da manutenção de uma religião ritualista, por parte de alguns, que consideravam a forma externa do culto como tudo que importava oferecer a Deus. Não há como negar que, guardadas as devidas proporções, é uma situação que nos lembra o ritualismo seco e morto dos dias do profeta Malaquias: sacrifícios oferecidos diante de Deus por corações distantes, tanto quanto possível, do Senhor digno de todo louvor.

Nesse sentido, os vv.1-6 tratam de uma convocação geral de Israel (v.1) a fim de comparecer diante do tribunal de Deus. O tom sério e grave com que tal convocação é feita é de “arrepiar” e fazer temer – e tremer. Diz o v.3: “Vem o nosso Deus e não se cala; diante dele há um fogo que consome e, ao seu redor, se abate uma enorme tempestade” (yabo’ ’elohênû we’al-yeherash ’esh-lepanayw to’kel ûsevîvayw nis‘arâ me’od). Tanto pela figura do fogo como pela da água, a ideia é de uma inevitável destruição para aqueles que forem apanhados por Deus. O motivo de Deus fazer a convocação é (v.4) “para julgar o seu povo” (ladîn ‘ammô). Quanto ao juiz da questão (v.6), “Deus é aquele que julga” (’elohîm shofet hû’).

Como que em uma grande assembleia, o Senhor se pronuncia contrário àqueles que o desagradam (v.7): “Eu testemunharei contra ti” (’a‘îdâ bak). Nessa ação, antes que haja qualquer mal-entendido, Deus já avisa os réus que o motivo do seu juízo não se devia à natureza, em si, dos sacrifícios que lhe ofereciam no Templo (v.8): “Eu não te reprovo devido aos teus sacrifícios e aos teus holocaustos” (lo’ ‘al-zevaheyka ’ôkîheka we‘ôloteyka). Apesar disso, o Senhor decreta (v.9): “Não aceitarei bezerro da tua casa, nem bodes do teu cercado” (lo’-’eqqah mibbêteka par mimmikle’oteyka attûdîm). A pergunta natural é: se o problema não era o sacrifício em si, tanto nas disposições técnicas como na qualidade dos animais, qual, então, era o motivo da repreensão?

Depois de o Senhor dizer que não precisa dos sacrifícios oferecidos a ele, no sentido de não ter necessidades que possam ser supridas por ofertas (vv.10-13), ele, então, toca no ponto sensível da questão: a motivação dos ofertantes. Eles participavam dos rituais ditados pelo Senhor, mas seu coração não acolhia nem seus ensinos, nem tampouco o amor por aquele a quem sacrificavam. A triste situação de uma religião apenas nominal e ritualista é exposta nos vv.16,17: “Mas Deus disse ao ímpio: que vantagem tens em repetir os meus preceitos e em carregar a minha aliança na tua boca, quando tu odeias o ensino e lanças fora as minhas palavras?” (welarasha‘ ’amar ’elohîm mah-leka lesaffer huqqay watissa’ berîtî ‘alê-pîka we’attâ sane’ta mûsar watashlek devaray ’ahareyka). Deus, que viu tais defeitos no coração dos ímpios, deu-lhes prova, também, do conhecimento a respeito dos efeitos externos da sua desobediência e da sua insubmissão. Deus lhes acusa de aprovar a desonestidade e a imoralidade (v.18), de serem maldosos e trapaceiros (v.19), de trair seus próprios irmãos (v.20) e de menosprezar a santidade do Senhor (v.21). Eis os motivos pelos quais Deus rejeitou os ímpios e os sacrifícios deles, a exemplo de Caim. Quando o Senhor rejeitou a oferta de Caim, não foi pelo seu conteúdo, mas devido à maldade do ofertante. Por isso, disse a Caim: “Se procederes bem, não é certo que serás aceito?” (Gn 4.7a) – há quem diga que a oferta de Abel foi aceita por ser “oferta de sangue”, mas a Bíblia não dá subsídios para tal visão extemporânea e confere à fé de Abel o motivo pelo qual ele e sua oferta foram aceitos (Hb 11.4).

Assim como Deus instruiu Caim sobre o modo de ser aceito, fez o mesmo aos ímpios a quem se dirige, no Salmo 50, em tom reprobatório. Fazendo isso, aponta três traços do culto verdadeiro. O primeiro deles é um coração genuíno. A primeira parte do v.14 diz: “Ofereça sacrifícios de gratidão a Deus” (zevah le’lohîm tôdâ). Apesar de os servos nominais do Senhor, pelo que diz o próprio texto, apresentarem a Deus suas ofertas – aquelas que Deus passou a recusar no v.9 –, Deus orienta o modo como deveriam ocorrer: com gratidão. Parece redundante: “Sacrifícios de gratidão com gratidão”. Entretanto, o que Deus quer ressaltar, por meio do salmista, é que a oferta exterior deve corresponder à devoção interior. Nesse aspecto, a oferta deve vir de um coração genuíno e, assim, fazer sentido e ser verdadeira. E isso vale para todas as áreas pelas quais os cultos são prestados ao Senhor.

O segundo traço é a fidelidade a Deus. A sequência do v.14 diz: “E mantenha os seus votos para com o Altíssimo” (weshallem le‘elyôn nedareyka). O texto não explica que votos são esses, mas, quaisquer que fossem, com fidelidade deveriam ser cumpridos. Independente de haver votos pessoais e pontuais, cada geração de israelitas renovava com Deus a aliança mosaica. Ela tinha um caráter bilateral. Diferente de outras alianças, tanto Deus como os homens se comprometiam com especificações de deveres e direitos. Do seu lado, Deus sempre foi fiel. Da parte dos servos, a ordem é que ajam do mesmo modo.

Finalmente, o terceiro traço é a submissão dependente. Diferente dos homens que desprezavam as palavras do Senhor (v.17) e, na verdade, o próprio Senhor (v.21), o servo verdadeiro conhece sua posição e a posição de Deus. Sabendo disso e obedecendo as orientações divinas, o v.15 revela um dever do servo. Diz-lhe o Senhor: “E clame a mim no dia do perigo” (ûqera’enî beyôm tsarâ). A dependência demonstrada nessa atitude revela a submissão do servo ao Senhor por saber que somente Deus tem poder para cuidar do homem que lhe pertence. E quando isso acontece, a atitude do verdadeiro servo é assim descrita por Deus: “Você me honrará” ou “você me glorificará” (tekavvedenî).

Tal é a distinção entre o servo verdadeiro e o servo falso; e a distinção entre o culto verdadeiro e o culto falso; entre aquilo que Deus aceita e aquilo que ele rejeita. Não há espaços para demonstrações vazias. Não há lugar para ritualismos que não refletem a adoração viva vinda do íntimo dos adoradores. Não quando Deus conhece tudo, incluindo o coração das pessoas. Nem tampouco, quando se sabe que ele não se comove com as aparências, mas que rejeita abertamente a adoração falsa. Com isso em mente, inevitavelmente temos de trabalhar os nossos corações para nos arrepender de pecados, para dedicarmos nosso tempo e nossos esforços a Deus e para sermos autênticos quando declararmos nossa adoração ao nosso criador e salvador. Caso contrário, ofereceremos a Deus um culto tão inútil quanto diplomas de cem dólares que trazem, risivelmente, o título de “doutor em divindades”.

Pr. Thomas Tronco

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Visão do Outro Lado da Vida

Em 1991, fui convidado, junto com um amigo, a integrar a equipe de voleibol de Jundiaí. Eu na posição de levantador e meu amigo como atacante. Íamos três vezes por semana para lá a fim de participar dos treinos. Mas os poucos horários de ônibus entre Atibaia e Jundiaí fizeram com que o tempo que permanecemos nessa rotina fosse uma aventura muito cansativa. Tal aventura começou no primeiro dia de treino. Não havia transporte de Jundiaí para Atibaia depois das 17 horas. Como o treino terminava por volta das 21 horas, planejamos ir de ônibus até a cidade de Itatiba e, de lá, pegar outro “suposto” ônibus para casa. Ao chegarmos em Itatiba, descobrimos que nossa pesquisa foi falha e que não havia qualquer condução naquele horário.

Sem ter o que fazer, resolvemos esperar na rodoviária até o dia amanhecer a fim de pegar o primeiro ônibus para casa. Nossa paciência durou apenas até meia-noite. Não aguentávamos mais ficar ali sentados e, assim, tivemos uma brilhante ideia: caminhar até Atibaia. Imaginamos que os cerca de trinta quilômetros não seriam difíceis de serem transpostos já que estávamos juntos, éramos atletas e iríamos conversando. Só percebemos que a sede e o treino físico que fizemos em Jundiaí nos fariam sofrer por todo o caminho quando já não dava para voltar. Andamos a noite toda e chegamos em Atibaia às 7 horas. O cansaço era inacreditável; as dores, também. Entretanto, não me arrependo hoje de ter feito aquela horrível jornada, visto que já descansei dela e que não sinto mais dor alguma. Agora que tudo já terminou, tenho apenas uma história engraçada para contar.

O Salmo 49 trata de um conceito parecido. Ele fala de “valores passageiros”. Segundo o texto, depois de esses valores ficarem para trás, nenhum benefício trarão aos homens. Por outro lado, apresenta um valor superior que perdurará para sempre, tornando-o caro ao homem e alvo de uma busca séria e sábia. Na verdade, o Salmo 49 é, em certo aspecto, muito diferente dos outros salmos, sendo mais parecido com o conteúdo de Eclesiastes e de Provérbios. Podemos, com toda propriedade, chamar esse capítulo de “salmo de sabedoria”.

O salmo inicia com um chamado geral (v.1): “Que todos os povos ouçam isto; Que todos os moradores da Terra deem ouvidos” (shim‘û-zo’t kal-ha‘ammîm ha’azînû kal-yoshvê haled). É importante notar que esse chamado é mesmo para todas as pessoas, independente da situação de cada um, o que inclui (v.2) o “rico” (‘ashîr) e o “pobre” (’evyôn). O que será dito no salmo vale para todos igualmente. Poucas realidades são iguais para os ricos e os pobres, a não ser aquelas ligadas à vida humana, em termos biológicos, e ao destino eterno definido pelo relacionamento que se tem, em vida, com o Senhor. Nessas áreas há duas certezas: todos morrem e todos são julgados por Deus.

Tratando assuntos nesse campo, o escritor explica o teor do seu discurso, que, na verdade, é uma aula para todos os homens (v.3): “A minha boca falará de sabedoria e a minha reflexão será de prudência” (pî yedaber hokmôt wehagût livvî tevûnôt). Ninguém deve duvidar da sabedoria que o salmista afirma ter, pois o teor do seu ensino, em consonância com as Escrituras, prova que ele fala o que é verdadeiro. Por isso, continua (v.4): “Inclinarei meus ouvidos a um provérbio; exporei o meu enigma com uma harpa” (’atteh lemashal ’oznî ’eftah bekinnôr hîdatî). Essa combinação das palavras “provérbio” e “enigma” ocorre outras vezes no Antigo Testamento (Sl 78.2; Pv 1.6; Ez 17.2; Hc 2.6) e está sempre ligada à exposição de um tipo de literatura de sabedoria. Assim, a que o salmista se propõe é expor conceitos que afetam de maneira fundamental a vida das pessoas. Aprender com sua mensagem é ser sábio, ao passo que ignorá-lo é a típica ação das pessoas tolas.

Tendo dito isso, o assunto é introduzido, a saber, o futuro inevitável de todos os homens na morte (v.10): “Pois se vê que os sábios, sem exceção, morrem, assim como sucumbem o tolo e o néscio” (kî yir’eh hakamîm yamûtû yahad kesîl waba‘ar yo’vedû). Tal futuro, segundo o texto, não pode de modo algum ser evitado (vv.7,9): “Um homem não pode remir o irmão, nem pagar a Deus pelo seu resgate... para que continue a viver perpetuamente e não veja o túmulo” (’â lo’-padoh yifdeh ’îsh lo’-yitten le’lohîm kafrô... wîhî-‘ôd lanetsah lo’ yir’eh hashahat). “Remir”, nesse contexto, significa “livrar da morte”. Ou seja, não há o que se faça para que os homens vivam para sempre sem morrer. Quem se rende a lutar por essa finalidade, diz o texto (v.8), “desiste” (hadal). Isso, certamente, torna os problemas presentes menores aos nossos olhos e, por isso, o próprio escritor não supervalorizava os problemas que atravessava na vida, pelo que diz (v.5): “Por que eu terei medo, nos dias maus, quando me acercar a iniquidade dos meus perseguidores?” (lammâ ’îra’ bîmê ra‘ ‘aôn ‘aqevay yesûvvenî). Afinal, no final da vida, depois de tudo ter passado, que importa se a vida foi mais ou menos difícil?

O texto revela que os homens, na esperança de superar o tempo e a morte (v.11), tolamente “chamaram as suas terras com seus próprios nomes” (qar’û bishmôtam ‘alê ’adamôt). Entretanto, o que têm de volta é o mesmo fim de todo ser vivo (v.12): “Eles perecem como os animais” (kabbehemôt nidmû). Inúteis são as riquezas, os feitos, as posses, as glórias e os elogios (vv.16-20). É uma visão bastante pessimista da vida. Se o salmo terminasse aqui, só seria fonte de tristeza e depressão.

Entretanto, o salmista vê mais longe que isso. Sua visão não é a de quem olha a vida encerrar em um velório, mas de alguém que, de uma posição superior, além da vida, a vê depois da morte. Surpreendentemente – para o contexto do Antigo Testamento, segundo o conceito da revelação progressiva –, o salmista tem conceitos muito definidos da vida eterna e do modo pelo qual o homem pode ter acesso a ela (v.15): “Deus, porém, livrará a minha alma das mãos da morte, pois me tomará para si” (’ak-’elohîm yifdeh nafshî miyyad-she’ôl kî yiqqahenî). Davi também usou, com os mesmos termos, a ideia de ter liberta “a sua alma da morte” (Sl 16.10). No seu contexto – do Salmo 16 –, isso significava ser protegido da morte que intentavam os inimigos. Mas, no Salmo 49, o contexto aponta para a inevitabilidade da morte. Aqui, o significado do v.15 não é que Deus impede o servo de morrer, mas que, quando ele morre, Deus não deixa seu servo sob os horrendos efeitos da morte, nem, tampouco, que se perca dele. O Senhor o livra da morte e o recebe para si.

O Novo Testamento, como porção final do que Deus revelou e, por isso mesmo, portador de pontos específicos e aprofundados da doutrina bíblica, concorda em todos os sentidos com o escritor do salmo. Jesus também disse que as riquezas são transitórias diante do poder da morte, de modo que chamou de “louco” aquele que coloca nos bens a sua alegria e não busca a verdadeira riqueza do relacionamento com Deus (Lc 12.19-21 cf. Mt 16.26). Na verdade, Jesus frisou a total incapacidade do homem perante a morte, dizendo: “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?” (Lc 12.25).

Mas a Bíblia não se ocupa apenas dos efeitos físicos da morte e, assim como o próprio autor do Salmo 49, olha para a morte sob um prisma mais amplo e se preocupa com o modo de reverter os seus efeitos espirituais, ou seja, a separação de Deus. Paulo escreveu aos romanos que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23a). Imediatamente, completa: “Mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23b). Dizendo isso, ele tanto demonstra estarem na morte as consequências eternas do pecado, como estar em Jesus a fonte da vida.

Se o salmista afirmou que o homem não pode promover o livramento dos efeitos da morte e, também, que tinha a esperança de ver Deus atuando como redentor, temos no Novo Testamento o perfeito paralelo. Paulo escreveu que “o homem não é justificado pelas obras da lei” (Gl 2.16a), mas que, por outro lado, é justificado “mediante a fé em Jesus Cristo” (Gl 2.16b). Jesus, como Deus que é, cumpre a esperança do salmista de redimir a alma do servo para que não permaneça na morte, segundo diz: “Tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Para alegria do salmista – e de todos os que creem em Jesus como seu Deus e salvador –, o resultado final de tal obra é que viveremos para sempre na presença de Deus, sem sofrer os danos e a condenação contidos na morte: “Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte, eternamente” (Jo 8.51).

O efeito que essa verdade teve sobre o escritor do salmo é que ele mantinha a tranquilidade nas provações e aguardava com esperança a redenção completa da sua alma na vida eterna. E nós, temos tido essa mesma esperança? Temos lançado as nossas preocupações na conta da certeza da redenção divina? Ou, à semelhança da minha cansativa jornada noturna, temos carregado um fardo por quilômetros e mais quilômetros sem fim?

Pr. Thomas Tronco

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Calvinistas Evangelizam? (Parte 3)

No século 17, o Brasil, mais uma vez, foi cenário da atividade missionária calvinista. Isso aconteceu como resultado indireto dos conflitos políticos entre Espanha e Holanda. Movido por esses conflitos, Filipe II, da Espanha, proibiu as relações comerciais entre os holandeses e todas as áreas de dominação espanhola, o que abrangia a América do Sul. Nessa época, a Holanda dominava a distribuição de açúcar na Europa e não podia abrir mão do comércio com a empresa açucareira nordestina. Por isso, em 1621, foi criada a Companhia das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã, cujo objetivo era a exploração mercantil na América.

A companhia promoveu duas invasões holandesas ao Brasil: uma na Bahia (1624-1625) e outra em Pernambuco (1630-1654). Esta última foi a mais bem sucedida e, para garantir a paz e os seus interesses no Brasil, a companhia enviou um representante, o conde João Maurício de Nassau, que governou o Brasil Holandês de 1637 a 1644.

Maurício de Nassau era crente, membro zeloso e assíduo frequentador da Igreja Cristã Reformada. Seu governo foi brilhante, cobrindo uma área que ia do Sergipe até o Maranhão. Ocorreu, porém, que a Companhia das Índias passou a adotar políticas que desagradavam os senhores de engenho, exigindo o pagamento imediato de empréstimos e impondo certos limites à liberdade religiosa. Quando, então, Nassau pediu demissão de seu cargo, iniciou-se a luta contra os holandeses. A chamada Insurreição Pernambucana (1645-1654) resultou na expulsão dos invasores que passaram a produzir açúcar nas Antilhas.

Foram os holandeses que trouxeram para o Brasil a igreja calvinista. Seu nome oficial era Igreja Cristã Reformada e contava com 22 congregações locais espalhadas pelo Brasil Holandês. Ela adotava confissões de fé calvinistas, além de outros credos ortodoxos antigos, e realizou uma intensa obra missionária, especialmente entre os índios. O primeiro pastor dessa igreja a se envolver com a evangelização dos nativos foi Vincentius Joaquimus Soler. A princípio, ele pregou na aldeia Nassau, no Recife (atual Bairro das Graças) e somente mais tarde, a pedido dos nativos da capitania da Paraíba, dedicou-se à evangelização dos índios. Cabe, porém, a David Doreslaer, cujo trabalho iniciou-se em 1638, o título de primeiro pastor missionário de tempo integral entre os nativos do Brasil.

O trabalho missionário dos calvinistas holandeses cresceu muito, a ponto de, em 1641, ser celebrada a primeira Ceia do Senhor na aldeia do cacique Pedro Poti. Várias tribos pediam que a Igreja Cristã Reformada lhes enviasse pregadores e congregações indígenas foram abertas. Até os antropófagos tapuias pediram o envio de missionários. Infelizmente, nem sempre essas solicitações podiam ser atendidas, até mesmo em virtude da instabilidade decorrente dos conflitos entre Holanda, Espanha e Portugal. Apesar disso, 17% do trabalho pastoral era dedicado aos índios, graças, inclusive, à iniciativa pessoal de vários ministros que viam a pregação aos nativos como parte obrigatória do seu ministério.

Em seu trabalho, os pastores calvinistas ganhavam a confiança dos nativos dando-lhes assistência social (remédios, alimentos, proteção, etc.), traduziam partes da Escritura para o tupi, produziam literatura reformada em português e em tupi, primavam pela educação e formação de professores índios (alguns se tornaram “consoladores” ou evangelistas) e zelavam não somente pelo ensino doutrinário, mas também pelo ideal de santidade que deve acompanhar a fé. De fato, o puritanismo holandês via a Bíblia como norma de fé e prática (norma credendi et agendi) e isso foi transmitido aos índios.

Infelizmente, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, a Igreja Cristã Reformada também partiu. Os índios convertidos foram incluídos no “Perdão Geral” promulgado pelos portugueses. Contudo, sem acreditar nesse perdão, os índios membros da primeira igreja evangélica verdadeiramente brasileira fugiram para a Serra de Ibiapaba, no Ceará, a 750 km do Recife. O local tornou-se, então, o que o padre jesuíta Antonio Vieira chamou de “Genebra de todos os sertões do Brasil”, repleta de índios calvinistas que consideravam o catolicismo uma fé falsa.

No mesmo ano da expulsão dos holandeses, os índios da Serra de Ibiapaba enviaram uma pequena delegação a Holanda, suplicando socorro em prol do povo que havia abraçado a fé calvinista. Porém, a Igreja Cristã Reformada viu-se atada pelas negociações de paz entre Portugal e Holanda e não enviou auxílio. Por isso, a igreja indígena morreu. Aos poucos, seus membros foram novamente submetidos a Roma ou massacrados como hereges. Foi assim que terminou um dos capítulos mais belos da história da igreja reformada no Brasil; e esse capítulo prova quão falaciosa é a acusação de que os calvinistas não se importam com a evangelização dos povos sem Deus. (A obra mais completa sobre o tema, escrita em português, é, sem dúvida, a de Franz Leonard Schalkwijk: Igreja e Estado no Brasil Holandês: 1630-1654. São Paulo: Vida Nova, 1989. O autor é pastor reformado holandês e ministrou muitos anos no Brasil, tendo realizado profundas pesquisas tanto aqui como em sua terra natal).

(Continua).

Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria