quarta-feira, 30 de março de 2011

O Desejo de Retornar ao Lar

Um dos filmes mais famosos e queridos da história do cinema é ET, de Steven Spielberg (1982). Ele conta a aventura fictícia de um extraterrestre feio – há quem discorde –, mas extremamente simpático, que é deixado na Terra. Enquanto ele demonstra um gosto ímpar pela flora terrestre, acumula conhecimentos sobre a cultura humana e desenvolve uma amizade especial com um garoto. Porém, seu objetivo é retornar ao seu lar. Um número incrível de crianças, hoje adultos, cresceu brincando de esticar o dedo indicador e falar a famosa frase que o pequeno E.T. repetia na versão dublada para o português: “Minha casa”. Seu desejo de retornar ao lar é alcançado no final do filme depois de uma incrível aventura vivida por ele e pela família do seu amigo, um garoto que, enganando as autoridades, o conduz de bicicleta à sua espaçonave.

O sonho de estar em casa não é exclusividade do personagem do filme ET. Muita gente, por diversas razões, é forçada a se afastar do lar e anseia pelo retorno. O escritor do Salmo 43 parece ser um deles. O contexto dos salmos 42 e 43 é o mesmo. Na verdade, eles fazem parte da mesma poesia e devem ser lidos juntos – muitos manuscritos hebraicos antigos apresentam os dois salmos como uma única obra. Eles até compartilham certa frase em três locais, marcando o término de cada divisão da poesia (Sl 42.5,11; 43.5), que diz: “Por que a minha alma se encurva? E por que se agita contra mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, o meu salvador pessoal e meu Deus” (mah-tishtôhahî nafshî ûmah-tehamî ‘alay hôhîlî le’lohîm kî-‘ôd ’ôdennû yeshû‘ot panay we’lohay).

Compartilhando o mesmo contexto, o Salmo 42.6 oferece, possivelmente, o local da composição dos dois salmos ou dos fatos que os inspiraram. O texto em questão diz que o salmista se lembra de Deus em três referências geográficas: as terras do Jordão, o monte Hermom e o monte Mitsar. O último não é conhecido, mas os dois primeiros sim. O monte Hermom fica no Extremo Norte de Israel, local de onde brota o rio Jordão. O monte Mitsar deve ficar na mesma região. É estranho ver o salmista, que servia no Templo em Jerusalém, tão longe de casa. Uma sugestão, que condiz com o estado de tristeza do escritor (Sl 42.3) e a referência à opressão dos inimigos (Sl 42.9,10; 43.2), é que se trata de um tipo de exílio, talvez devido a uma derrota militar como exemplificado em 2Rs 14.14. Isso explica muito bem o fato de que aquele que era imbuído do louvor no Templo dizer, vislumbrando um tempo futuro, que irá ao altar de Deus e o louvará (Sl 42.5,11; 43.4,5). Por isso, também, as lembranças do trabalho que fez no passado (Sl 42.4). E ainda o seu desejo de ser conduzido de volta ao “monte santo” (Sl 43.3) – um modo frequente de se referir a Jerusalém, local do Templo.

A fim de obter o esperado retorno ao lar, o salmista faz alguns pedidos ao Senhor no Salmo 43. Seu anseio é que Deus lhe forneça o necessário para atravessar esse momento duro e o conduza à sua pátria e à plena atividade cultual como no passado. São três pedidos por atuações divinas, sem as quais seu retorno não será possível.

O primeiro desses pedidos é justiça (v.1). Seu clamor é direto: “Julga-me, ó Deus” ou “faça-me justiça, ó Deus” (shaftenî ’elohîm). É um pedido corajoso. Digo isso porque há mais implicações nele que simplesmente dizer “livra-me, Senhor”. Apesar de o objetivo final ser o mesmo, o meio que o salmista utiliza para recorrer a Deus não é um simples clamor por misericórdia, mas a efetivação da justiça. O salmista pede que Deus aja como um juiz que decide sobre uma demanda. O reclamante é o escritor do salmo; o reclamado é a nação que o privou do lar e o conduziu para as terras do Norte, visto dizer: “Leve a julgamento a minha causa contra o povo infiel” (rîvâ rîvî miggôy lo’-hasîd).

O peso desse pedido está no fato de o salmista se colocar nesse tribunal junto com seus opressores. Ele quer ser escrutinado junto com eles na confiança de que sua justiça, em comparação com a dos inimigos, lhe trará um veredicto favorável e uma atuação benéfica da parte de Deus. É claro que o salmista não imagina ser perfeito ou inculpável, mas sabe que sua disposição de buscar a Deus e de manter uma vida compatível com a de um servo do Senhor o faz estar longe do caráter daquele que lhe oprime, a quem descreve como “homem mentiroso e injusto” (’îsh-mirmâ we‘awlâ).

O segundo pedido do salmista é receber de Deus força (v.2). À primeira vista, não parece uma solicitação, mas apenas uma declaração: “Pois tu és o Deus da minha fortaleza” (kî-’attâ ’elohê ma‘ûzzî). Essa aparente declaração muda de função quando vemos os questionamentos levantados na segunda parte do verso: “Por que me rejeitaste? Por que eu perambulo obscurecido pela opressão dos meus inimigos?” (lamâ zenahtanî lammâ-qoder ’ethallek belahats ’ôyev). Tais perguntas são mais do que a tentativa de entender os fatos. O salmista está comparando duas realidades: o fato de Deus ser a sua fortaleza e a situação deplorável que vive. O escritor do salmo, ao demonstrar que tais realidades são contraditórias, o faz na intenção de ver Deus fazer valer seu caráter protetor em relação aos seus servos a fim de afastar a opressão dos inimigos.

É uma maneira poética, compatível com o estilo e com a época da composição do livro de Salmos, de pedir a Deus que intervenha. Nesse caso, o que o salmista tem em mente é que o Senhor atue fornecendo-lhe o que uma fortaleza, ou seja, uma cidade fortificada, fornece às pessoas que nela se refugiam: condições de resistir aos ataques dos inimigos. O salmista quer ser protegido dos inimigos e resistir quanto tempo for necessário até que volte para casa.

O terceiro pedido é consciência (v.3). Isso o salmista pede sob duas ópticas: “Envia a tua luz e a tua verdade” (shelah-’ôreka wa’amitteka). “Luz” e “verdade” são duas palavras que, cada uma ao seu modo, podem apontar para a mesma coisa. Nas Escrituras, a palavra “luz” é frequentemente utilizada de forma figurada para se referir ao que é verdadeiro, justo e que representa o bem, como é o exemplo do dito de Jesus aos discípulos: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5.14). Assim, é olhando para os justos preceitos de Deus que o salmista espera ser beneficiado. O objetivo a ser alcançado pela luz e pela verdade, nesse caso, é: “Elas me guiarão; conduzir-me-ão ao teu monte santo e ao lugar da tua habitação” (hemmâ yanhûnî yebî’ûnî ’el-har-qadsheka we’el-mishkenôteyka).

A pergunta é: “Como a verdade de Deus, ou seus preceitos santos, poderia levar o salmista de volta a Jerusalém?”. Isso não fica claro no texto. Entretanto, a julgar pelas queixas do salmista a respeito da injustiça com que é tratado por homens iníquos, é possível que ele tivesse esperança de que seus opressores fossem convencidos da sua maldade e do modo insensato de proceder. Munidos, então, de tal consciência, recobrariam o proceder reto e permitiriam ao salmista retornar à sua terra e às sua funções no Templo em Jerusalém.

Justiça, força e consciência são as necessidades do escritor dos Salmos 42 e 43 para que possa retornar ao lar. Entretanto, também são as necessidades de muitos crentes que, aprisionados pelo pecado e zombados pelo diabo, anseiam retornar ao lar, à presença e à comunhão com seu Deus e salvador. Eles necessitam que a justiça de Deus mais uma vez corra em suas veias, fazendo-os lembrar de quem são e recordar quem lhes dirige a vida. Precisam de força para abandonar o mal, para se afastar dos falsos amigos e para enfrentar os custos de andar com Cristo. E precisam de consciência para distinguir as ciladas do inimigo, por pequenas e camufladas que sejam. Eles precisam voltar para o lar. Devem ansiar por ver novamente o monte santo do amor de Deus. Precisam sentir saudade da segurança do seu recanto. Resumindo, eles devem apontar o dedo para os céus e dizer esperançosos: “Minha casa”.

Pr. Thomas Tronco

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