domingo, 3 de outubro de 2010

Abrindo o Mar Vermelho e Fechando a Bíblia

Em agosto de 2010, os pesquisadores Carl Drews (Departamento de Ciências Atmosféricas e Oceânicas da Universidade do Colorado) e Weiqing Han (Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos) publicaram o artigo científico intitulado Dynamics of Wind Setdown at Suez and the Eastern Nile Delta.[1]

Sabe-se que a manutenção do vento (estresse eólico) sobre uma superfície da água pode rebaixar o seu nível (wind setdown) e expor porções de terra anteriormente submersas (vide figura abaixo). Como exemplo, pode-se ilustrar o fenômeno com exemplos descritos pelos próprios autores: em setembro de 2004, o furacão Frances (233 km/h) rebaixou o nível da água no Cedar Key Harbor, na Flórida (EUA), tendo sua normalização após nove horas do evento. Semelhantemente, ventos intensos rebaixaram em 2 m a porção oeste do lago Erie em dezembro de 2006 e janeiro de 2008.[2]


Com base em estudos de imagens de satélites e antigos mapas disponíveis sobre o delta do rio Nilo, os autores recriaram, virtualmente, a região ao leste do rio Nilo, bem ao norte do canal de Suez, buscando assemelhá-la ao que haveria sido em 1250 a.C.[1]

Esse modelo virtual foi submetido a um vento com direção leste de 28 m/s (aproximadamente 100 km/h) durante doze horas. Constatou-se a exposição de uma porção de terra com 3-4 km de extensão e 5 km de largura que permaneceu insubmersa por quatro horas. A porção de terra exposta estava localizada a 2 m de profundidade do nível normal.

Os autores concluem que o modelo é útil para melhor conhecimento da navegação em áreas de águas rasas que podem ser rebaixadas por ocasionais ventos de alta velocidade oriundos do oceano.

Todavia, o que há de tão especial nesse estudo atmosférico/hidrodinâmico? Os autores sugerem, em seu estudo, que essa região recriada seria a localização da travessia do Mar Vermelho por Moisés e os hebreus que o acompanharam rumo à Canaã, a “Terra Prometida”. Logo, estaria cientificamente respaldada a travessia do Mar Vermelho.

Nesse momento, surge a pergunta: “Mas a região do antigo braço Pelusium, a leste do delta do rio Nilo não se localiza no extremo norte do canal de Suez, ou seja, a centenas de quilômetros ao norte do Mar Vermelho?”

Essa mudança radical da localização do milagre do Mar Vermelho pode ser decorrente da teologia liberal que relativiza a autoridade do texto bíblico e o coloca sob suspeita de falibilidade sob o crivo científico. A adoção desse tipo de exegese bíblica pode fazer com que palavras como “Mar Vermelho” sejam entendidas como um “rio anexado a um lago”, porque seria naturalmente impossível, na mente dos liberais, que a abertura do Mar Vermelho acontecesse como no relato bíblico. A própria historicidade dos milagres bíblicos é contestada nesse movimento teológico, pois os ditames da ciência secular têm, para seus adeptos, preeminência sobre o relato bíblico.

Em relação à interpretação da palavra “mar” no texto contido em Êxodo 14, há justificativa para que se adote a localização proposta pelos autores? Seguramente, “não”. Vejamos, abaixo, alguns pontos importantes, retirados do próprio texto bíblico, sobre a impossibilidade de adotarmos a mesma visão dos autores desse estudo em relação à posição geográfica e o recurso utilizado para separação das águas (vento):

Moisés, o líder que retirou os hebreus do Egito, cresceu no Egito e foi educado em todas as suas ciências (At 7.22). A agricultura era uma das principais ciências locais, visto que a subsistência desse antigo império dependia das cheias do rio Nilo e da consequente fertilidade das margens fluviais. Certamente, devido à familiaridade com o local, o autor do Pentateuco saberia discernir bem quanto a usar a expressão “rio” (Nilo) e “mar” (Vermelho). Nota-se, por exemplo, que Moisés usa a palavra “Nilo” no livro de Gênesis referindo-se ao “rio” com o qual teve contato em todo o seu período no Egito. Ademais, as ciências militares, transmitidas ao seu príncipe (Moisés), ensinaram-lhes que o Mar Vermelho era um importante obstáculo natural contra invasões oriundas do Leste. É muito improvável que Moisés tenha confundido essas duas localizações. Aliás, Moisés era tão conhecedor daquela região que jamais levaria o povo a um lugar sem saída. Eles não possuíam barcos e Moisés sabia que o povo jamais conseguiria transpor o enorme mar à frente deles naquela região. Moisés, inclusive, já havia passado por aquela região, mas seguiu adiante com o povo. Todavia, para que o Faraó tivesse a impressão de que o povo estava desorientado e, consequentemente, vulnerável, sem liderança e perdido, Deus ordenou que os hebreus retornassem ao local onde justamente era humanamente impossível escapar: “Disse o Senhor a Moisés: diga aos israelitas que mudem o rumo [outras traduções: ‘que retrocedam’] e acampem perto de Pi-Hairote, entre Migdol e o mar. Acampem à beira-mar, defronte de Baal-Zefom” (Ex 14.1-2). Essa foi uma estratégia de guerra criada pelo próprio Deus que usou a presunção egípcia como isca: “O faraó pensará que os israelitas estão vagando confusos, cercados pelo deserto” (Ex 14.3). Os arrogantes egípcios foram atraídos para o local de “águas profundas” para que fossem, justamente, afogados posteriormente.
No Velho Testamento, o termo yam-sûph ([Ws-<y^) é utilizado para designar várias localizações geográficas como: a) região dos lagos amargos próximo ao norte do golfo de Suez e ao longo do canal de Suez; b) golfo de Suez; c) golfo de Aqabah ou d) Mar Vermelho propriamente dito. Dessa forma, até mesmo entre os exegetas “fundamentalistas” há dúvida em relação ao local exato do milagre do Êxodo.[10,11] Entretanto, algumas informações do texto bíblico nos ajudam a tender para regiões contrárias às defendidas pelos autores do artigo em questão: “águas profundas” e “cercados pelo deserto”. Sabe-se que as características geográficas daquela região mudaram desde a época de Moisés, mas é possível inferir, com base nos próprios mapas usados pelos autores, que a região não sofreu drásticas mudanças. O que parece contraditório ao texto bíblico é que à medida que a suposta localização para o milagre se aproxima do Norte de Suez, mais próximo se encontra da Região Leste do delta do Nilo. Ou seja, uma região fértil por causa das cheias do Nilo, não desértica. Além disso, os lagos daquela região, que até poderiam ser interpretados como “mar”, são regiões pantanosas com profundidades em torno de 20 a 25 m.[7] Nota-se, por exemplo, a região do lago Timsah,  mais ao norte de Suez, um grande “mar” de 14 km², mas com profundidade de 1 m.[8] Chamar por “mar” grandes porções de água por causa de sua área em detrimento da profundidade é algo possível. O próprio lago Tiberíades ou “Mar da Galiléia” possui 166 km² de área e módicos 25,6 m de profundidade média.[9] Pelo contrário, à medida que se aproxima do golfo de Suez e o Mar Vermelho (propriamente dito), as profundidades aumentam significativamente. No golfo de Suez, as profundidades oscilam entre 55 e 73 m ao passo que no Mar Vermelho a profundidade média é de 491 m. Além disso, essas “águas profundas” estão mais “cercadas pelo deserto” que as regiões candidatas mais ao norte. Veja, na figura abaixo, como o local eleito pelos autores pouco se harmoniza com o texto bíblico, ainda que não conheçamos o local exato do milagre.



Os autores dizem que uma região submersa em 2 m foi exposta com dimensões de 3-4 km de extensão e 5 km de largura. Como podemos ver na figura abaixo, retirada do próprio artigo, não há, nesse modelo, a formação de paredes de água por toda a extensão do trecho, nem mesmo uma mureta. Note que essas águas se encontrariam represadas a 2,5 km de distância (se considerarmos uma pessoa no ponto médio da largura do trecho). Como poderia o retorno dessas águas, com apenas dois 2 m de diferencial do nível normal, durante o retorno de 2,5 km, encobrir os carros de guerra egípcios e seus cavaleiros provocando a morte de todos os que estavam no local (Ex 12.28)? Por que Moisés diz que “águas profundas” e “volumosas” (Ex 15.5,10) encobriram todo o exército egípcio? Há quem diga que Moisés fosse megalomaníaco e suas hipérboles foram usadas para enaltecer os hebreus. Se sim, por que ele mesmo escreve sobre as marcantes humilhações que o povo sofreu perante Deus devido à rebeldia?



Explicações hidrodinâmicas para o milagre ocorrido no Mar Vermelho não são recentes [3-6]. Igualmente não é recente a tentativa de turvar o poder de Deus e seus milagres. Adota-se entre muitos cientistas que milagre é a palavra usada para quando não se pode explicar cientificamente (ainda) o ocorrido. No entanto, quando o milagre contraria as leis naturais, descarta-se a possibilidade de o milagre ser verdadeiro e o fato é reclassificado como “fábula”, “mito”, ou, até mesmo, “delírio”.

A negação do sobrenatural é uma pressuposição. E essa pressuposição parece ter permeado o pensamento dos autores, pois eles buscaram testar suas hipóteses em localizações em que a separação das águas fosse um fenômeno estritamente natural. Como vimos, o texto bíblico permite pensarmos em outras localizações, mas improváveis do ponto de vista natural. Bom seria termos a mesma metodologia em outras regiões candidatas e que se mostrasse que a separação das águas pela ação do vento per si é impossível. Essa constatação científica reforçaria a ação sobrenatural da separação das águas para os hebreus. Em suma: um milagre de nosso Senhor.

Considerar em nossas observações a possibilidade do sobrenatural maximiza as percepções do ser humano sobre o que o cerca. Aliás, a melhor maneira de se delinear o plano natural é por meio da observação a partir do plano sobrenatural. Crer no sobrenatural não anula a veracidade das leis naturais, mas tão somente considera que elas podem ser revogadas momentaneamente por uma autoridade absoluta, o Deus trino. E essa atuação sobrenatural não é banalizada por Deus: a escassez dessas incríveis ocorrências é sabiamente administrada por ele em seu plano redentor de seus filhos e para sua honra e glória. E mais: Deus não está limitado a ações naturais. Tudo está sob o seu domínio e a ele compete atuar como quiser, ora naturalmente, como o crescimento do arroz e feijão das lavouras que nos sustentam todos os dias (“É o Senhor que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento” – Sl 104.14), ora sobrenaturalmente, como a ressurreição dos mortos (“Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas desse fato” – At 2.32), e até mesclando as duas modalidades, como controlar os corvos que promoveram o primeiro serviço de delivery de comida da história (“Você beberá do riacho, e dei ordens aos corvos para o alimentarem lá” – 1Rs 17.4).

Havia um vento oriental no dia em que Moisés regozijou-se da visão privilegiada que teve da atuação divina? Sim (Ex 14.21), mas quem abriu o mar colocando suas águas como soldados que se enfileram protegendo e cortejando o povo que passa foi Deus, não o vento. Como demonstrado no artigo, o vento é capaz de fazer (apenas) o que os autores constataram.

Ademais, é importante lembrar que a velocidade do vento atribuída pelos autores foi balizada pela limitação humana para a caminhada sob o vento. Enfim, ventos de maior intensidade que, por ventura, separassem águas em regiões mais profundas, impediriam que o povo caminhasse pela brecha marítima. Cremos que tal limitação já seria muito prevalente entre crianças, idosos e mulheres considerando a velocidade do vento nesse estudo (100 km/h), pois no modelo proposto não ocorre a formação de paredes de água que os protegesse das rajadas eólicas.

E vale a lembrança: o mesmo Deus que sabe abrir o Mar Vermelho sabe abrir o “coração vermelho” do pecador: “Venham, vamos refletir juntos, diz o Senhor. Embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão” (Is 1.18). A profundidade do pecado que está no coração do homem não é de apenas “2 m”. Deus pode abrir o “mar de pecado” do seu coração, fazê-lo atravessar até a margem em que ele está e afogar o “velho homem” (Rm 6.6). E há a garantia: um dia você olhará para trás e verá, como Moisés viu os corpos dos egípcios na praia, o “velho homem” morto na praia da vida mundana. Que vitória!

O Deus trino permanece abrindo corações vermelhos de pecado ainda hoje, mas você já saiu do Egito?

Leandro Boer


Referências bibliográficas

1. Drews C, Han W (2010) Dynamics of Wind Setdown at Suez and the Eastern Nile Delta. PLoS ONE 5(8): e12481. doi:10.1371/journal.pone.0012481.

2. NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration) Tides & Currents (2009) Center for Operational Oceanographic Products and Services. Available: http://tidesandcurrents.noaa.gov/. Accessed 2009 Oct.

3. Tulloch AB (1896) Passage of the Red Sea by the Israelites. Journal of the Transactions of the Victoria Institute (now Faith and Thought) 28: 267-280.

4. Nof D, Paldor N (March 1992) Are There Oceanographic Explanations for the Israelites´ Crossing of the Red Sea? Bull Am Meteorol Soc 73(3):305-314.

5. Nof D, Paldor N (August 1994) Statistics of wind over the Red Sea with application to the Exodus questions. J Appl Meteorol 33(8): 1017-1025.

6. Voltzinger NE, Androsov AA (2003) Modeling the Hydrodynamic Situation of the Exodus. Translated from Russian to English by E. Kadyshevich. Izv Atmos Oceanic Phys 39(4):482-496.

7. International Lake Environment Committee. http://www.ilec.or.jp/database/afr/dafr19.html. Accessed on October, 1st, 2010.

8. Stephan Gollasch, Andrew N. Cohen (2006). Bridging Divides: Maritime Canals as Invasion Corridors. Springer. pp. 229.

9. Aaron T. Wolf, Hydropolitics along the Jordan River, United Nations University Press, 1995.

10. Hoffmeier, James Karl (1999).The Problem of the Re(e)d Sea. Israel in Egypt: The Evidence for the Authenticity of the Exodus Tradition. Oxford: Oxford University Press. pp. 199–222. 


11. Hoffmeier, James Karl (2005). Red Sea or Reed Sea. Ancient Israel in Sinai: the evidence for the authenticity of the wilderness tradition. Oxford: Oxford University Press. pp. 81–5.

Um comentário:

  1. Muito bom, principalmente o final, realmente Deus tem poder para abrir o mar de pecados dos homens e fazê-los transpor para a maravilhosa graça, onde há perdão e alegria perene, nem vontade dá de olhar para trás.
    Poderíamos usar também o argumento de que a bíblia fala que o povo não molhou os pés? até!

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