No afã de desfrutar da criatividade poética de homens e mulheres talentosos, fiquei muito feliz ao ver o livro Os cem melhores contos brasileiros do século, da Editora Objetiva, tendo como organizador Ítalo Moriconi. Trata-se de um livro relativamente grande, com suas mais de seiscentas páginas, editado com ótima qualidade gráfica e uma capa muito chamativa com nomes de diversos escritores.
Fiquei curioso ao ler na contracapa: “Uma antologia livre de academicismos. Uma pesquisa orientada pela qualidade”. Não compreendi o que significava “livre de academicismos”, mas dei um voto de confiança baseado nos nomes consagrados que vi na capa. Entre os autores da primeira metade do século 20 encontrei nomes como Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo e vários outros que ainda não tive oportunidade de ler. Entre os autores dos anos 1960 conhecidos por mim estavam Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles e Fernando Sabino. Nos anos 1970, encontrei Adélia Prado que, apesar de escrever em uma época que não produziu obras que aprecio, tem ela minha admiração e um lugar cativo na minha biblioteca. Já entre os escritores das duas últimas décadas do século 20, os únicos nomes conhecidos para mim eram os de João Ubaldo Ribeiro e Luiz Fernando Veríssimo, o que revela meu gosto por literatura antiga e não moderna.
Entre as obras da primeira metade do século, não houve grandes surpresas para mim; apenas deleite, maior ou menor. Porém, entre os textos mais recentes, apesar de muitas coisas interessantes, fiquei chocado com alguns contos de natureza parcial ou completamente sexual. Achei isso uma falta de elegância em um compêndio que traz nomes imortais. Mas lembrei-me que o livro avisa ser “livre de academicismos”. Pensei: “Tudo bem! Apesar de eu não gostar, a obra faz o que se propõe”. No entanto, na sequência da leitura, percebi contos com conteúdo pornográfico que, ao meu entender, pouco tinham de arte e literatura. Obras de uma postura deselegante, agressiva e tremendamente baixa, moralmente falando.
Normalmente, eu deixaria o livro de lado apenas me lembrando que cada obra é compatível com seus autores e colecionadores. Quanto aos leitores, cada um lê o que quer. Entretanto, esse não é o caso do volume que li. Sua primeira edição data de 2001 e, recentemente, o Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Educação, imprimiu na capa do livro o seu selo e o distribuiu aos milhares nas escolas públicas para que adolescentes tivessem pleno acesso a eles. É certo que a maior parte das obras é educativa e necessária à educação dos estudantes brasileiros, mas a falta de critério foi absurda ao deixar “novamente” passar material inapropriado para uma população em fase de formação, não apenas física, mas intelectual e psicológica.
Entre os contos modernos que li, três deles me enojaram ao lembrar que crianças e adolescentes os leriam sob o título de “literatura escolar”. Fiquei até pensando: “O próprio livro não avisa que é desprovido de academicismo? Como, foi (ou está sendo) distribuído pela Secretaria de Educação?”
O motivo da minha revolta é que um dos contos, Flor de cerrado, de Maria Amélia Mello, conta a história de um assalto a uma mulher por parte de um menino. Apesar de não dizer sua idade, ele fica caracterizado com um delinquente menor de idade. O assalto, em apenas alguns olhares e palavras, se transforma em uma cena sensual recheada de palavras obscenas em que o pequeno bandido se torna um amante narcisista, egoísta e rude, sem qualquer respeito pelo sexo feminino, enquanto a mulher, ao que me parece, desiludida da vida, se delicia em receber um tratamento degradante e violento. O garoto vai embora depois do seu crime em total impunidade recebendo o sentimento de gratidão da mulher violentada.
O segundo conto, Obscenidades para uma dona de casa, de Ignácio de Loyola Brandão, conta a história de uma mulher casada, de bom nível social, sexualmente retraída, que passa a receber cartas anônimas com obscenidades dirigidas a ela. O conto começa a narrar a inquietude da mulher diante da situação – por um lado receosa de que o fato viesse a público e, por outro, tendo de lidar com as sensações inéditas que as cartas lhe produziam. Enquanto a narrativa prossegue, trechos das tais cartas entremeiam o texto, em itálico bem chamativo, para fazer referência às lembranças da mulher quanto ao que leu anteriormente ou para descrevê-la lendo a recém-chegada correspondência. O conteúdo desses trechos é “inominável” – usando uma palavra extraída do próprio conto – devido à linguagem extremamente baixa, fundamentalmente pornográfica e, até mesmo, agressiva, além de convites e sugestões no sentido de levar a mulher casada a se encontrar com o amante anônimo e, com ele, fazer coisas que nunca antes sonhou. O final do conto revela que o autor das cartas indecentes endereçadas à pudica senhora era ela mesma.
O terceiro conto a que me refiro tem o nome de Estranhos, de Sérgio Sant’ana. É a história de um jornalista que vai conhecer um apartamento de aluguel muito barato próximo ao morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Chegando à portaria, ocorre a coincidência de uma mulher misteriosa e mal-humorada chegar no mesmo momento a fim de olhar o mesmo apartamento. Os dois vão juntos e, no meio da percepção de que o apartamento às vezes é alvo de balas perdidas vindas da favela, ocorre uma conversa que revela um tipo de vida promíscuo da mulher em comparação ao estilo de vida calmo do jornalista que é fiel à namorada com quem pretende se casar. A certa altura da conversa, os dois acabam por ter uma relação sexual incidental recheada de certos tipos de perversão descritos, mais uma vez, em tons pornográficos. O fim do ato é seguido por uma separação imediata, cada um seguindo seu rumo sem nem sequer saber o nome do outro. Isso acaba por marcar o jornalista que, desinteressado, a partir de então, pelo relacionamento que visava ao casamento, rompe com a namorada e muda seu ramo profissional dentro do jornalismo.
Esses três contos, apesar de interessantes quanto à história, têm como alicerce uma pornografia que deveria ficar restrita às publicações do seu próprio gênero. Entretanto, estão dentro de uma coleção de autores do século 20, alguns deles, literatos consagrados, que está sendo oferecida às crianças e adolescentes da rede pública de ensino pelo próprio governo estadual. Segundo professores e bibliotecários, a procura desse livro pelos alunos é impressionante e não há volumes suficientes para atendê-los. Isso, normalmente, seria motivo de alegria. Mas, nesse caso, é uma procura, não por Graciliano Ramos ou Érico Veríssimo, mas especificamente pelos contos pornográficos. Os alunos sabem até mesmo a página em que devem procurar as frases de linguagem chula.
Portanto, o que as crianças estão buscando gera nelas, com o patrocínio do Estado de São Paulo, o gosto por desvios como: 1) estupro; 2) confiança na impunidade de atos criminosos; 3) infidelidade conjugal; 4) degradação da mulher; 5) sexo casual com completos estranhos; 6) desprezo por relacionamentos monogâmicos.
Soube que, enquanto alguns professores estão revoltados com esse material em suas escolas, há outros que o defendem dizendo ser essa a linguagem das crianças. Ainda que essa seja a realidade de muitas crianças e adolescentes, não há qualquer razão para o Estado favorecer essa condição de violência e de imoralidade. Caso contrário, o Estado deveria também fornecer instrução sobre como abortar um feto ou oferecer feiras de ciências em que se desenvolvessem novos métodos de fabricação de cachimbos de crack. Quem sabe, até educação física voltada a espancamento de grupos minoritários.
Talvez alguém diga que tais literaturas não podem produzir os efeitos alistados acima e que é um exagero clamar contra essas “obras”. Se isso é verdade, o governo estadual, então, está investindo um dinheiro absurdo em algo inútil e incapaz de produzir educação nos alunos. Porém, se a literatura educa e muda a vida dos leitores, a irresponsabilidade governamental é quase sem precedentes. Acaso o secretário de educação de São Paulo não leu Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, obra cuja tragédia romântica causou uma onda de suicídios na Europa na época da sua publicação? Ou será que o secretário leu somente o índice do livro antes de aprovar sua publicação e distribuição com o selo estadual e com o dinheiro público?
O que podemos esperar das autarquias brasileiras? Que o governo federal forneça camisinhas para crianças de dez anos enquanto o governo estadual fornece um manual de perversões? Sinceramente, isso é algo que nunca esperei testemunhar. O governo estadual e a Secretaria da Educação devem sentir vergonha do que forneceu aos alunos da rede pública. Os pais e professores devem sentir tristeza pelo que seus filhos e alunos têm aprendido. E a sociedade deve se indignar com atitudes irresponsáveis como essa, de modo que a indignação se revele de dois modos: “cobrando” mudanças, como o recolhimento das literaturas impróprias às crianças e adolescentes, e “promovendo” mudanças por meio das urnas. Essa situação não pode continuar.
Espero que a literatura, como instrumento de educação no bem, volte a tomar o espaço perdido na educação moderna. Temo ver o dia em que coisas como romances, poemas e poesias venham a ser conceitos extintos e desconhecidos pelos jovens, sob a tutela dos órgãos governamentais. Sofro ao pensar que é possível que o mais próximo da literatura que os jovens possam chegar um dia seja Florentina.
Pr. Thomas Tronco
DE FATO, ESCREVI UM TEXTO NO RECANTO DAS LETRAS, NO QUAL TENTO ENTENDER E DISCUTIR ESSA INVERSÃO TOTAL DOS VALORES SENDO INSTIGADA ENTRE NOSSOS JOVENS.LITERATURA TEM QUE TER FOCO PARA CERTOS PERFIS DE ELEITORES. A SECRETARIA DA EDUCAÇÃO SE EQUIVOUCOU.
ResponderExcluirÉ LAMENTÁVEL, E ACREDITE, QUEM SE COLOCA CONTRA A SITUAÇÃO ENTRA NA BERLINDA DE PODER SER ADJETIVADO DE "FALSAMENTE CONSERVADOR, OU FALSO MORALISTA".
NESSE MUNDO DE HOJE TEMOS QUE TER CORAGEM DE POSTAR E SEDIMENTAR NOSSAS POSTURAS FRENTE AO QUE ACREDITAMOS SER O MAIS RAZOÁVEL.NOSSA CRISE SOCIAL É PAUTADA NA DECADÊNCIA DA MORAL, DA ÉTICA E PRINCIPALMENTE DA INSENSATEZ DOS HOMENS QUE SE JULGAM OS DONOS DOS CAMINHOS.
MARIA VIRGINIA BOSCO (MAVI,AUTOR NO RECANTO DAS LETRAS)