sexta-feira, 24 de junho de 2011

O Jesus que Muitos Não Conhecem

O homem mais falado na história humana é Jesus Cristo. Infelizmente, não há uma unidade no que se fala a respeito dele. As pessoas falam livremente do seu perfil e obra, mas pecam em seus comentários porque não o conhecem por completo.

Há uma infinidade de livros que falam a respeito dele e todas as linhas filosóficas e religiosas têm a necessidade de argumentar sobre ele, pois é o mais marcante nome da história. Esse nome abre um espaço largo para a aceitação imediata de qualquer coisa que se diga se “foi ele que disse”. É interessante para os pensadores e líderes usarem a imagem de Cristo sob o seu próprio prisma, visto que por ele se obtém um controle mais forte das pessoas à sua volta.

Mas alguns erros, dentre muitos, precisam estar bem claros no trato a respeito de Jesus Cristo:

1)   É totalmente errado limitar a definição de Jesus Cristo a um personagem histórico. Ele não é um mártir, um pensador, um mágico, um bom homem, alguém de outro lugar;
2)   É também errado dizer que ela é apenas um homem com poder, pois isso é consequência do que ele realmente é. Ele é mais que um profeta, um mestre ou um homem de grande poder, pois isso tudo é o comportamento natural de seu ser.

A Bíblia é a única fonte de referência exata de todas as descrições corretas a respeito dele (Jo 5.35). Até os seguidores de Cristo cometeram este erro e foram reprovados nesta avaliação (Lc 24.19-25). E os seguidores de Cristo são reprovados porque não o recebem como ele é, mas como querem que ele seja (Jo 1.11).

Algumas coisas, por outro lado, são sumárias no real entendimento. Cristo é:

1)   Filho de Deus (Lc 9.35), logo é Deus;
2)   O cordeiro de Deus entregue à morte pelos homens como pagamento pelo preço do pecado (Jo 1.29). A comunhão com Deus depende única e exclusivamente disso;
3)   Senhor que quer ser obedecido (Jo 14.21). Suas ordens também estão na Bíblia;
4)   Criterioso sobre o modo como é apresentado aos povos (Lc 24.25).

Repetindo: O Jesus Cristo correto, dentre tantos outros, é o Jesus da Bíblia.

É responsabilidade dos crentes em Cristo promover o seu nome, saber sua vontade e obedecer seus mandamentos. É necessário levar a sério, pois qualquer desvio leva o discípulo ao pecado (Mt 22.29). Isso é tão real que muitas pessoas que dizer ser crentes nunca conheceram de fato a Jesus, de modo que se deve até mesmo considerar a evangelização dentro do rol de membros das igrejas.

Estas coisas são observadas nas vidas das pessoas pelos seus conjuntos de valores que pelo comportamento revelam que não estão de acordo com a Palavra de Deus e nem em comunhão santa e verdadeira com o Deus da verdade (Jo 14.6).

Se você, crente, quer conhecer a Deus pelo Senhor Jesus – uma coisa é o resultado da outra –, pode começar por textos que, pessoalmente, acho empolgantes como Hebreus 1 e João 14. A Bíblia é integralmente ligada a ele.

Ah! Ele também não é um anjo, viu?! Mas depois podemos falar sobre isso. Conheça-o e compartilhe o que aprendeu.

João Ivo Matos da Silva
Membro da IBR-SP

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Desencorajamento Demoníaco

Há algum tempo escutei uma história sobre um casal de missionários experientes que abandonou o campo missionário após ser surpreendido por mais vicissitudes do que as que estão normalmente reservadas aos que se propõem à vida missionária. As dificuldades eram muitas, o trabalho parecia não progredir e eles refletiram bastante se deveriam ou não manter o plano germinado em seus corações. Logo, optaram por deixar o campo missionário. Entretanto, o marido, já sob o conforto de sua casa e vendo-se livre das intempéries da vida missionária, disse à sua esposa: “O diabo nos enganou”.

O desencorajamento é uma das armas mais eficazes de Satanás contra o povo de Deus. De modo hábil, Satanás tem buscado abater o povo de Deus substituindo a coragem e ousadia oriundas do Espírito Santo pela covardia e abatimento espiritual de origem demoníaca. Por outro lado, Satanás, ironicamente, sabe inverter os papéis da coragem e da covardia entre os seres humanos. Ele desencoraja os crentes a negar a si mesmos e os encoraja a dar vazão às concupiscências da carne.

O resultado? Uma interessante combinação de qualidades: coragem para pecar e covardia para servir a Deus.

Essa estratégia maligna não é nova. Jó foi alvo desse desencorajamento maligno, mas resistiu. Elifaz, o primeiro amigo a se manifestar diante da calamidade em que se encontrava a vida de Jó, não poupou ataques ao amigo dizendo: “Eis que Deus não confia nos seus servos e aos anjos atribui loucura. Quanto menos àqueles que habitam em casas de lodo, cujo fundamento está no pó, e são esmagados como a traça!” (Jó 4.18,19).

De modo interessante, o texto nos revela que essas palavras de desencorajamento foram dadas a Elifaz por um espírito que passou diante dele, o deixou arrepiado e que a feição não era possível ser reconhecida (Jó 4.15,16). Considerando que as mensagens dirigidas a Jó são claramente caluniosas, não é difícil perceber que Elifaz foi enganado por um espírito demoníaco e, de modo temerário, as descarregou sobre Jó. É importante notar: Elifaz foi o primeiro a se manifestar entre o grupo de amigos!

Desse pequeno trecho emanam, pelo menos, três lições: 1) Satanás utiliza a calúnia e a ofensa para desencorajar os servos de Deus; 2) Satanás faz com que as mensagens de desencorajamento cheguem muito rápido aos ouvidos do servo de Deus que sofre; 3) Satanás pode enganar as pessoas mais próximas do servo para que sua mensagem de desencorajamento chegue aos seus ouvidos com maior credibilidade.

Como combater o desânimo e o desencorajamento demoníaco? Podemos seguir o exemplo de Jó, pois ele resistiu aos ataques de desencorajamento de Satanás confiando nas promessas de Deus: “Ainda que ele me mate, nele esperarei; contudo os meus caminhos defenderei diante dele” (Jó 13.15). “Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25).

O apóstolo Pedro encoraja os crentes a ter a mesma conduta que Jó diante desses desencorajamentos provenientes de Satanás: “Ao qual [Satanás] resisti firmes na fé, sabendo que as mesmas aflições se cumprem entre os vossos irmãos no mundo” (1Pe 5.9).

Diante desses preceitos bíblicos podemos perceber que o conceito da “paciência de Jó” – tão deturpado nos dias de hoje entre os ímpios – possui uma dimensão maior e mais nobre que simplesmente suportar as dificuldades da vida. Ela é uma virtude concedida por Deus aos servos que estão firmemente engajados na batalha espiritual legítima e que estão sob os intensos ataques desencorajadores de Satanás.

“Eis que temos por bem-aventurados os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Jó, e vistes o fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e piedoso” (Tg 5.11).

Leandro Boer

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Mudança para Pior

Ouvi, certa vez, que o tempo tem uma maneira toda especial de mudar as coisas e as pessoas. Quanto mais eu vivo, mais concordo com essa frase. Entretanto, não é apenas a vida que atesta o poder do tempo para transformar as coisas. A Bíblia também dá exemplos incisivos nesse sentido. Algumas mudanças são para melhor, como no caso de Jacó que, depois de um histórico contendo algumas trapaças, buscou a bênção que vinha de Deus e não dos seus próprios meios (Gn 32.24-30). Ou do rei Manasses que, depois de um início de reinado terrível no qual chegou ao cúmulo de sacrificar seu filho em uma adoração pagã, recebe uma severa disciplina de Deus e passa por uma conversão que muda totalmente sua vida (2Rs 21.1-16 cf. 2Cr 33.10-16).

Contudo, nem todas as mudanças descritas na Bíblia foram para melhor. O caso de Salomão é um dos exemplos de homens que começaram bem, mas que, com o tempo, foram se desviando dos seus objetivos iniciais e dos caminhos do Senhor. Ele começou seu reinado como um homem de bem e como um bom servo de Deus: “Salomão amava ao Senhor, andando nos preceitos de Davi, seu pai” (1Rs 3.3a). Um das suas primeiras providências foi ir ao tabernáculo, onde Deus lhe disse: “Pede-me o que queres que eu te dê” (1Rs 3.5b). Podendo pedir qualquer coisa, sua oração foi: “Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?” (1Rs 3.9). Isso foi tão agradável a Deus que este abençoou o novo rei israelita com bênçãos de todo tipo.

Apesar do bom começo, o final da vida de Salomão foi marcado por atitudes ruins e contrárias ao seu desejo inicial. Ele formou para si um harém com cerca de mil mulheres (1Rs 11.3 cf. Dt 17.17), criou um sistema pesado de impostos e de trabalhos forçados (1Rs 11.28 cf. 12.4) e cometeu a loucura de adorar os falsos deuses das suas mulheres (1Rs 11.4-8). A pergunta natural que se faz diante desse contraste é: “O que aconteceu com Salomão? O que o fez mudar tanto?”. Felizmente, para o nosso ensino, o próprio Salomão dá pistas do que ocorreu na sua vida.

Em primeiro lugar, ele não refreou seus desejos. Ele confessa: “Tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma” (Ec 2.10a). Seguindo essa filosofia às avessas, Salomão diz que se deu à bebida e ao prazer de muitas mulheres (Ec 2.3,8b).

Em segundo lugar, ele buscou alegria nas posses: “Empreendi grandes obras; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas. Fiz jardins e pomares para mim e nestes plantei árvores frutíferas de toda espécie. Fiz para mim açudes, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores. Comprei servos e servas e tive servos nascidos em casa; também possuí bois e ovelhas, mais do que possuíram todos os que antes de mim viveram em Jerusalém. Amontoei também para mim prata e ouro e tesouros de reis e de províncias” (Ec 2.4-8a).

Finalmente, ele deu vazão ao seu orgulho. Ele alcançou o intento de superar a todos: “Engrandeci-me e sobrepujei a todos os que viveram antes de mim em Jerusalém” (Ec 2.9a). Nesse aspecto, ele se tornou um rei invejável, admirado e elogiado por muitos reis (1Rs 10.4-10; 2Cr 9.23,24). Mas os muitos elogios parecem não lhe terem sido benéficos, visto que um dos seus provérbios talvez seja fruto da experiência pessoal: “Como o crisol prova a prata, e o forno, o ouro, assim, o homem é provado pelos louvores que recebe” (Pv 27.21).

O ponto positivo de tudo isso é que nos fica, pelas Escrituras, a lição sobre o que não fazer e o que não permitir ao nosso coração para que se desvie. Pela pena do próprio Salomão, que aprendeu duramente como não agir, fica a lição que qualquer um pode aprender, mesmo aqueles que não foram dotados com o entendimento dado por Deus ao rei de Israel. Seu conselho vale para todos e é tão atual quanto no dia em que foi escrito: “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino” (Pv 1.7); e “de tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ec 12.13,14). Uma lição importante como essa só pode mesmo ser completada com a famosa frase de Jesus: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Mt 13.43b).

Pr. Thomas Tronco

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O Cristão Diante da Morte (Parte 2)

Convém agora falar acerca da maneira como o crente deve agir diante de pessoas que sofrem a dor da separação ocasionada pela morte de um parente ou amigo. É comum nessas ocasiões vermos vários indivíduos tentando desempenhar o papel de consoladores, trazendo palavras com as quais pretendem suscitar certo conforto nos que pranteiam.

Porém, infelizmente, nesses momentos, com frequência, ouvimos esses consoladores (que às vezes se apresentam como cristãos ou até pastores!) dizer as mais grosseiras tolices e devaneios, acreditando que seus ares artificiais de sabedoria podem emprestar autoridade às palavras absurdas que proferem. Um diz que o incrédulo morto descansou (!); outro, que, de algum lugar, a alma do defunto estará cuidando doravante daqueles que aqui permanecem; outro, ainda, fica enaltecendo virtudes imaginárias do falecido, suscitando dúvidas nos presentes sobre se vieram ao velório da pessoa certa.

Todas essas demonstrações de ignorância são absolutamente infrutíferas. É na Bíblia que aprendemos como ajudar os enlutados. Paulo ensina, em 1Tessalonicenses 4, com que palavras devemos consolá-los. Ele diz nos versículos 13-17 que, assim como Jesus morreu e ressuscitou, Deus, mediante Jesus, um dia trará juntamente em sua companhia os crentes que morreram; diz ainda que o Senhor, depois de dar sua palavra de ordem, uma vez ouvida a voz do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os crentes mortos ressuscitarão; diz também que os cristãos que estiverem vivos nesse dia serão arrebatados junto com os que hão de ser ressuscitados e, entre nuvens, todos subirão ao encontro do Senhor nos ares a fim de permanecer para sempre com ele.

Depois de expor tudo isso, Paulo diz: “Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (v.18). Por isso, bem fariam todos os cristãos se conhecessem a fundo “estas palavras”. Isso os tornaria mais úteis no auxílio dos que sofrem em razão da separação, evitaria emudecerem diante dos que, inconsoláveis, pranteiam a morte de alguém, e poria freio nos desvios que com soberba os indoutos proclamam em momentos tão propícios à reflexão da verdade.

Evidentemente, as palavras que Paulo escreveu servem apenas para o consolo dos que choram a morte de crentes. No texto analisado acima, o apóstolo ensina sobre a tranquilidade que podemos ter quando pensamos nos mortos em Cristo (1Ts 4.16).

Em se tratando da morte de incrédulos, nenhuma palavra agradável pode ser dita a respeito do estado ou do lugar em que a alma deles se encontra. Isso porque a Palavra de Deus é extremamente amarga quando fala sobre o destino eterno dos que não receberam Jesus Cristo, crendo nele como Salvador de sua vida. Tais pessoas, segundo as Escrituras, estão condenadas ao tormento eterno no inferno, preparado para o diabo e seus anjos, onde o verme não morre e o fogo nunca se apaga! (Mt 25.41, 46; Mc 9.43-48; Lc 16.19-31; Jo 3.36; Ap 20.11-15).

É claro, porém, que o cristão deve ter tato. Há maneiras sábias de dizer essa verdade num funeral de pessoa incrédula. Basta, durante conversas particulares ou no pronunciamento de um breve sermão dirigido a todos, chamar a atenção não para a condição espiritual do defunto (que já não importa mais), mas para a condição espiritual dos ouvintes. Esse proceder preservará o que realmente é importante e livrará o cristão comum ou o pastor de situações embaraçosas.

Entretanto, é evidente que se alguém perguntar sobre o destino da alma do falecido incrédulo, terá o cristão de, cuidadosamente, dizer a verdade. O consolo enganador é obra do mundo e do diabo, não dos ministros de Cristo. E é melhor os ouvidos dos enlutados serem alertados por verdades dolorosas que o coração deles ser iludido com uma falsa paz.

Uma forma sábia de agir diante de perguntas embaraçosas formuladas nesses momentos é fazer o interlocutor chegar a suas próprias conclusões. Basta responder-lhe brandamente com perguntas do tipo: “A Bíblia diz que só os crentes em Cristo são salvos. Ele era crente em Cristo?”. Respondendo a essa questão, o interlocutor chegará às suas próprias conclusões, sejam elas tristes ou não. Caso responda que não sabe, então o servo do Senhor deverá dizer: “Se não sabemos se ele morreu tendo fé em Cristo ou não, também não podemos saber onde a alma dele está”.

Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria

quarta-feira, 25 de maio de 2011

As Recordações do que Deus Faz

Tenho muitas recordações maravilhosas do meu passado. Algumas delas, surpreendentemente, de quando eu era muito pequeno. São lembranças que vêm e vão, mas que, apesar da sua volatilidade em minha mente, ainda produzem sensações agradáveis. Há também lembranças dolorosas – algumas delas “literalmente” dolorosas. Refiro-me a lembranças das frequentes injeções de antibióticos que eu tomava por causa de infecções de garganta que insistiam em me atacar. O problema não eram as injeções em si, já que, com a devida técnica e com a cooperação do paciente, nenhuma injeção é realmente ruim. Mas cooperação era algo que não vinha de mim. Na verdade, quando eu tomava injeções na farmácia perto da minha casa, ninguém podia comprar nada até que eu fosse liberado, já que “todos” os funcionários tinham de me segurar. Era terrível – e por culpa minha.

Depois de adulto, mas ainda com o trauma de criança, precisei tomar uma sequência de injeções de antibióticos. Eram duas injeções por dia durante quase uma semana. Já fazia pelo menos quinze anos que eu não recebia nenhuma injeção. A primeira delas foi um drama para mim. Minha impressão inicial era de que eu sentiria uma dor insuportável, coisa que nem de perto aconteceu – na verdade, não senti nem a agulha. Nos próximos dias fui recebendo novas doses, sempre em meio ao pânico. Isso perdurou até que me lembrei, em certa dose, que em nenhuma das aplicações anteriores eu havia sofrido qualquer dor. Lembrei-me de que, mediante minha cooperação, nenhuma aplicação doeu. Foi nesse momento que deixei a experiência do passado me acalmar e me livrar do trauma de infância. Hoje, tomo injeções sempre que preciso sem sofrer com isso. Pode parecer pouco, mas para mim foi a libertação de uma escravidão.

Eu não fui o único a me beneficiar de uma recordação. Davi, em um momento de crise, manteve a esperança ao olhar para o passado. O Salmo 61 mostra uma sequência de considerações de Davi diante de uma crise que ele atravessava. Não há um título no salmo que nos ajude a identificar o momento histórico em que ele está inserido. Isso normalmente nos ajuda a compreender cada frase proposta pelo escritor. Contudo, o próprio texto deixa escapar algumas nuances da situação do salmista. Sabemos que Davi estava abalado (v.2) pelos riscos que corria (v.4), riscos de perder o trono e a vida (v.6). Nesse contexto, Davi atravessa três momentos em uma progressão que o leva da angústia à esperança.

O primeiro momento de Davi nessa situação é a tristeza do presente. Fossem quais fossem os detalhes dos acontecimentos ao redor do salmista, o resultado nele é bem definido. Ele diz (v.2): “Da extremidade da Terra eu clamo a ti ao desfalecer o meu coração” (miqtseh ha’arets ’eleyka ’eqra’ ba‘atof livvî). “Desfalecer o meu coração” é uma expressão muito forte. Ela também pode ser traduzida como “no meu desespero”. Não se trata daquele desânimo casual, mas de uma aflição intensa baseada na completa falta de certeza sobre o futuro. O fato de Davi orar a Deus “da extremidade da terra” pode indicar que ele está em uma campanha longe de casa. Uma guerra distante dos próprios domínios é uma guerra em que o inimigo conhece bem a terra e tem, próximo de si, suprimentos e reforços. Isso se dá de modo exatamente oposto no caso dos invasores que, quanto mais longe vão, mais distantes ficam de tudo que prezam e que lhes dá segurança. Não é difícil imaginar como um revés militar em uma situação como essa pode atingir o coração do rei. Davi devia se sentir muito desesperado com os acontecimentos presentes.

Isso tudo o leva ao segundo momento que é o desejo quanto ao futuro. Quem, em um momento de tristeza, não almeja o alívio? Davi não era diferente. Ele olha para o futuro e se imagina protegido do perigo. Esse é seu mais profundo desejo nesse instante. No entanto, como é extremo o seu desespero, é também extremo seu desejo. Ainda no v.2 ele ora: “Que tu me leves até a rocha mais alta que eu” (betsûr-yarûm mimmennî taghenî). Davi quer, aqui, ser colocado em um lugar onde não possa, com suas pernas e braços, alcançar, pois é alto demais para ele. Dificilmente se trata de um lugar físico, mas, utilizando-se de uma figura de linguagem, ele se refere à segurança que somente Deus pode fornecer e garantir. O próprio Senhor é chamado algumas vezes pelo salmista de “rocha”, no sentido de ser o sumo protetor dos que lhe pertencem (Sl 19.14; 62.7) – outros escritores se referiram a Deus nos mesmos termos, sempre atrelando sua segurança pessoal à atuação que vem dele (Dt 32.31; Ps 89.26; 94.22; Is 26.4). Assim, o que Davi pede é algo que para ele é “inatingível”. Seu desejo quanto ao futuro só pode ser alcançado pela mão protetora do Senhor. Somente Deus poderia fazê-lo voltar em segurança para casa, para a presença dos seus amados e para as funções do seu trono.

Como ninguém, exceto Deus, pode conhecer o futuro, o salmista não se sente tranquilo simplesmente por ter desejos quanto ao que viria. Ele sabia que era possível que seus anseios não se realizassem, visto que não estavam sob seu controle. Essa correta percepção conduz, então, o salmista ao seu terceiro momento na situação que é a lembrança do passado. Se Davi não conhecia o futuro, certamente conhecia o passado. Sabia das experiências que tivera com Deus. Se o Senhor agiu de maneiras diversas em cada dificuldade que Davi atravessou, um fator esteve sempre presente: o cuidado de Deus para com o servo. Com isso em mente, Davi justifica sua oração a Deus (v.3): “Pois tu foste o meu refúgio, uma torre forte na presença do inimigo” (kî-hayiyta mahseh lî migdal-‘oz miffenê ’ôyev). Eis o que há nas recordações de Davi: o Senhor o ajudando nas dificuldades, protegendo-o dos inimigos e dando-lhe vitórias gloriosas. “Por que ele agiria diferente agora?”, deve ter pensado Davi. Por isso, a sequência do salmo contém declarações de confiança e promessas de louvor e de fidelidade – exatamente o modo como o servo de Deus deve se comportar em “todas” as circunstâncias.

Em certo sentido, os momentos vividos por Davi durante sua angústia estão presentes na vida de todos nós. Sempre que os problemas crescem e parecem que nos destruirão, ficamos desanimados e sem esperança. Somos abatidos pela dor. Nesse instante, passamos a desejar um futuro melhor. Vislumbramos o momento em que os fortes laços afrouxarão. Muitas vezes, até encontramos consolo em ilusões que sabemos que, na realidade, não ocorrerão. Se até aqui nossa experiência se iguala à do salmista, o terceiro momento desse crescimento pode ou não surgir em nossa vida. Há quem, durante os problemas, se afasta de Deus e, para tanto, utiliza-se de desculpas como “não estou com cabeça para pensar em Deus no momento” ou “você diz isso porque não sabe o momento difícil que estou atravessando”. Se isso acontece, só se pode esperar mais dor e sofrimento.

Por outro lado, há quem, no passado, notou o amor de Deus sustentando, dirigindo e libertando do mal. As recordações do lamento cedendo lugar ao louvor dão a essas pessoas a devida esperança de que Deus continuará a lhes proteger e a ser rocha que fica acima dos problemas, sua torre forte. E ao fazerem isso, progridem na vida cristã, aprendem a depender mais de Deus, conhecem melhor o Senhor e se submetem cada vez mais a ele. Nesse processo todo, as recordações das bênçãos de Deus no passado são ferramentas fundamentais. Afinal, se a recordação de injeções bem aplicadas podem vencer um trauma de infância, imagine o que fará a recordação da graça atuante de Deus em nossa vida!

Pr. Thomas Tronco

O Cristão Diante da Morte (Parte 1)

O cristão, genuíno membro da igreja de Deus, deve aprender a se comportar adequadamente diante da morte. O estilo de vida do crente verdadeiro não é mera representação teatral, que, em face dos mais profundos sofrimentos da vida, permite tirar a máscara de santidade e revelar desespero e ódio contra Deus. Ao contrário, a verdade é que no enfrentar das situações realmente difíceis, nas quais é impossível manter qualquer grau de hipocrisia ou falsa piedade, a magnitude do caráter cristão maduro desponta com brilho ainda maior.

Que situação mais difícil o homem pode enfrentar do que a morte? É ela o terrível legado que herdamos dos nossos primeiros pais, que desobedeceram ao Criador no Éden (Gn 2.15-17; 3.19; Rm 5.12). É o pagamento indesejado que recebemos por ter pecado (Rm 6.23). É o fim para o qual caminhamos a passos largos (Ec 12.1-7). Mais do que isso, é o inimigo inexorável que vem em nosso encalço para, no inevitável dia do encontro, nos deixar prostrados (Lc 12.20). Nós, coroa da criação, criados não para morrer, mas para viver eternamente!

Que é ensinado na igreja de Deus sobre o modo como o cristão deve comportar-se diante da morte? Conforme o entender dos mestres dessa igreja, qual deve ser a postura do crente quando um ente querido seu parte desta vida? Como ele pode ajudar de modo real e significativo os enlutados? E quando a morte, enfim, o vier chamar? Como deverá proceder?

As respostas dadas a todas essas perguntas devem ter como fundamento as palavras das Sagradas Escrituras. É na Bíblia que obtemos respostas claras e precisas para todas as questões relacionadas à morte, nosso cruel e último inimigo.

De modo prático, o Livro Sagrado mostra que, quando perdemos um ente querido, a tristeza e o choro diante de tão doloroso fato não são censuráveis. Davi, homem de Deus, pranteou amargamente a morte de seu filho Absalão (2Sm 18.32-33). Marta e Maria foram consumidas de tristeza pela morte de Lázaro, morte esta que levou o próprio Senhor Jesus, doador da vida, às lágrimas (Jo 11.33-35). O historiador Lucas nos conta que quando Estevão morreu apedrejado, homens piedosos o sepultaram e fizeram “grande pranto sobre ele“ (At 8.2). O mesmo Lucas narra o quanto os crentes de Jope choraram a morte de Dorcas, irmã amada por todos daquela igreja (At 9.36-39). Inúmeros são os exemplos de homens e mulheres de Deus que choraram quando viram seus queridos mortos.

O apóstolo Paulo ensina que quando o falecido é crente, o desespero por sua morte deve ser evitado. Entretanto, Paulo não ensina que é errado nos entristecermos nessas ocasiões. Diz que não devemos nos entristecer “como os demais que não têm esperança” (1Ts 4.13). Segundo ele, esse tipo de tristeza tão comum nos incrédulos só se aloja no coração de um crente quando ele esquece o fato de que os salvos ressuscitarão um dia. Para Paulo, a amarga tristeza dos incrédulos enlutados está associada à sua falta de esperança. Logo, segundo ele, os crentes não devem entristecer-se como eles uma vez que, cientes da ressurreição futura, têm real esperança.

Por isso, conforme o ensino do grande apóstolo, a postura do cristão diante da morte de outro crente querido seu deve ser de tristeza esperançosa, que é fruto da certeza da ressurreição futura dos salvos. É fato indiscutível que, de posse das verdades acerca da ressurreição dos santos (1Co 15; 1Ts 4.13-18), qualquer crente pode evitar o desespero quando a alma de um de seus queridos salvos parte para o céu. E, não bastasse essa bendita certeza, vem ainda em nosso auxílio nas horas de saudade a doce lembrança das promessas bíblicas acerca do lar celestial, presente morada das almas dos santos que partem deste mundo (Lc 16.22; 23.42,43; Fl 1.21-23; 2Tm 4.18).

É claro que esses consolos podem não nos valer na hipótese de o defunto ser incrédulo. Porém, mesmo nesses casos, não fica o crente desamparado, pois conta com a atividade sobrenatural do Consolador Divino, que lhe alivia as mais profundas dores (Jo 14.16-17; Rm 8.26-27), e pode descansar na soberania de Deus.

É fora de dúvida que uma prática que muito pode ajudar o coração enlutado é o isolamento temporário. Esse isolamento tem por propósito o dedicar-se à oração e não deve ser feito em prejuízo de nossos deveres e responsabilidades. Aprendemos isso com o próprio Mestre. Quando Jesus recebeu a notícia de que João Batista havia sido decapitado (Mt 14.1-12), procurou um lugar isolado (Mt 14.13). O grande assédio de uma multidão doente e faminta interrompeu seu retiro por algum tempo (Mt 14.13-21). Porém, depois de cumprir seu trabalho, buscou novamente o isolamento e orou só, sobre o monte (Mt 14.22,23). O evangelista Mateus diz que esse isolamento em razão do luto durou cerca de dez horas (Mt 14.25)!

Talvez os crentes entristecidos pela morte de alguém ficassem surpresos com o efeito restaurador e didático dessa prática. Infelizmente, o que vemos com frequência são cristãos enlutados derramando o coração ininterruptamente diante de amigos, psicólogos, pastores e conselheiros. É claro que isso tem seu lugar e valor, mas nada pode substituir a busca do consolo de Deus, diante de quem devemos derramar o coração todo o tempo (Sl 62.8; Mt 11.28-30; Fp 4.6,7) e em cuja Palavra sabemos poder encontrar alívio para a nossa alma (Sl 19.7; 119.50).

No episódio narrado por Mateus e analisado acima, é notável outro exemplo deixado pelo Mestre. O texto mostra que, mesmo entristecido pela morte tão cruel de João, o Senhor Jesus Cristo, ao invés de ser amparado, amparou os outros. Socorreu uma multidão necessitada, quando seu próprio coração sofria (Mt 14.14, 19-21). Nisso também os crentes devem imitar seu Salvador. Devem ser como o trigo, que esmagado, produz pão puro para alimentar os que estão ao redor.

Outra lição acerca do comportamento do crente enlutado está no livro de . Todos conhecem a tocante história desse homem piedoso que perdeu bens, saúde e filhos em meio a uma tempestade de provas que o Senhor lhe enviou (Jó 42.11). Todos também conhecem aquelas que talvez sejam suas palavras mais marcantes, pronunciadas logo depois que recebeu a notícia da morte de seus filhos: “…o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!”. O texto bíblico diz que Jó fez essa declaração após ter-se lançado em terra, em atitude de plena adoração a Deus (Jó 1.18-21).

Isso mostra que, quando está enlutado, o cristão deve fazer que de seus lábios flua o louvor decorrente do reconhecimento da soberania de Deus. Trata-se de um gesto chamado pelo autor da carta aos Hebreus de “sacrifício de louvor” (Hb 13.15), ou seja, um louvor associado à dor, que brota do coração de quem sofre e só se pode esperar do homem que confessa Jesus Cristo e descansa na certeza de que todas as coisas o Senhor realiza de conformidade com sua vontade soberana e sempre boa.

Por isso, quando morre um ente querido, não é correto o crente ficar perguntando inconformado: “Por quê? Por quê? Por quê?”. Na Bíblia aprendemos que é pecado discutir com Deus e questionar suas ações (Jó 38.1,2; 40.1,2; Is 45.9; Rm 9.20). Proceder desse modo é evidência de fé rasa, de má compreensão de quem é o Senhor e de disfarçada revolta contra sua vontade soberana.

(Continua)

Pr. Marcos Granconato
Em A prática da igreja de Deus, p. 90-93.
Soli Deo gloria

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Chamado de Deus

Em 1Tessalonicenses 5.24 temos a informação de que o chamado vem de Deus. Mas, o que significa esse chamado? Para que Deus nos chamou?

Na mesma carta, em 2.12, lemos que fomos chamados para o seu reino e glória. Assim, se você foi chamado para viver no reino de Deus, foi ele quem o capacitou; foi ele quem lhe colocou no caminho que ele mesmo estabeleceu. Só podemos ir até Deus se ele nos chamar e conduzir conforme o seu meio que é o sangue do libertador, seu Filho unigênito, nosso Senhor Jesus Cristo. Somente a obra de Cristo é suficiente para nos justificar (Rm 8.30).

O chamado de Deus é também um chamado para a vida. Por isso, quando você ler o verbo “chamar” ou o substantivo “chamado” no Novo Testamento, lembre-se de que o termo aponta, muitas vezes, para o privilégio de sair de um estado de trevas e morte e vir para a luz. 

Um exemplo claro se encontra no chamado de Jesus a Lázaro, quando o ressuscitou da morte. Jesus ordenou que abrissem o sepulcro e chamou: “Lázaro, vem para fora!“. Naquele momento, tal chamado pareceu sensato? Ora, a ordem só pareceria sensata se Lázaro estivesse vivo. Assim, Jesus teve de restaurar todo o vigor do corpo e prover a revitalização de todas as células. O sangue de Lázaro tornou a correr em suas veias, sendo bombeado pelo coração que voltou a bater sob o comando do cérebro restaurado. Lázaro, enfim, voltou a ser um homem vivo e, sendo agora capaz de ouvir, atendeu e saiu do túmulo!

Isso ilustra o significado do chamado de Deus. Vê-se aí que só ele pode chamar “eficazmente”. E Deus não chama assim sem antes transformar. Se não for desse modo, o chamado será sempre sem resposta. Uma vez que Deus é sábio e não louco, é assim que ele garante que seu chamado tenha resposta positiva.

Para que Deus nos chamou? A resposta está em textos como 1Tessalonicenses 2.12; 2Tessalonicenses 2.14; 1Pedro 5.10 e 2Pedro 1.3. Esses versículos ensinam, entre outras coisas, que ele nos chamou para a sua eterna glória. Como entender essa glória? Leia João 17.22. Aqui temos doutrinas profundas. Afinal, quando o Deus Filho dialoga com o Deus Pai, o que colhemos disso? Só doutrinas maravilhosas e eternas!

Jesus diz, no texto de João, que ele nos deu a glória que o Pai havia lhe dado. Creio que o Senhor não fala aqui da sua glória eterna, pois ele a compartilha com o Pai desde a eternidade. A glória a que se refere aqui, porém, é dada a ele pelo Pai. De que consiste essa glória? Creio firmemente que se trata da relação especial com Deus que se torna nossa pela ação especial do Espírito Santo.

No jardim do Éden, Adão tinha um relacionamento perfeito com Deus e isso era uma glória. Porém, Adão podia pecar como, de fato, pecou e estragou tudo. Assim, a glória de um relacionamento perfeito com Deus se foi. Quando Jesus encarnou, ele se tornou o segundo Adão. Acredito que o relacionamento especial que Jesus encarnado teve com o Pai foi uma glória de que ele não havia ainda desfrutado, posto que nunca antes provara essa condição. Foi para essa glória que fomos chamados: a glória de um relacionamento especial com Deus pela ação do Espírito Santo. Sim, pois o relacionamento com o Pai é intermediado pelo Espírito Santo que habita em nós graças à obra realizada pelo Filho. Esse relacionamento com Deus é basicamente a adoração em espírito e em verdade.

Queridos, o chamado é de Deus! Ele é fiel e sua ação fiel fará a obra graciosa de santificação em nós. Se você foi chamado, então pode experimentar a santidade desde agora e também na eternidade.

Pr. Carlos Nagaoka
IBR Japão
Soli Deo gloria

terça-feira, 17 de maio de 2011

A Dureza das Provações

Devido a problemas que tenho na coluna, tenho praticado natação três vezes por semana. Tem sido muito bom para mim. Normalmente eu entro na piscina com dores e saio sem, bem disposto para começar o dia de trabalho. Geralmente é assim, a não ser nos dias de teste físico. Nesses dias, tenho de nadar em sessões que são cronometradas. Para o meu estado físico, alguns desses períodos são intermináveis. Preciso de todo o meu esforço e determinação para não atender o impulso de parar no meio do teste. Ao completá-lo, parece que cheguei ao final de uma maratona. Contudo, nem dá tempo de comemorar, pois uma nova série é proposta e tenho de começar tudo de novo, vez após vez. Em algumas ocasiões, penso que não serei capaz de terminar e fico muito desanimado ao olhar o relógio que perece não andar. Cada chegada me faz crer que em algum momento terei de desistir.

Meu sofrimento permanece apenas enquanto cumpro esses testes físicos e, ao final, o máximo que pode me acontecer é estar mais cansado que o normal e com algumas dores. Davi, entretanto, passou por provações que o fizeram ficar desanimado e temeroso. O Salmo 60 foi escrito em uma dessas ocasiões. O título do salmo diz “Quando ele guerreou com Aram Naharaim e com Aram Zobá e quando Joabe voltou e feriu Edom no vale do sal, doze mil homens” (behatsôtô ’et ’aram naharayim we’et ’aram tsôvâ wayyashav yô’av wayyak ’et-’edôm begê’-melah shenêm ‘asar ’alef). Aram, a que o texto se refere, é a Síria. Trata-se de um território muito grande onde Zobá está na parte sul, fazendo fronteira com o limite Norte de Israel. Já Aram Naharaim, que significa Aram “entre os dois rios” – o Eufrates e o Tigre –, fica ao norte, na região conhecida como Mesopotâmia. Empreender uma guerra para estabelecer um domínio político sobre toda essa região e comandar a principal rota comercial entre a Mesopotâmia e o Egito não é uma tarefa de pequena monta. Essa era a missão que Davi empreendia com muito custo. Era também, além dos interesses comerciais, uma estratégia de defesa, já que o território sírio servia, para Israel, como Estado “tampão” no caso de uma invasão assíria.

Apesar do grande empreendimento, o texto de 2Samuel 8, que nos oferece o contexto histórico do salmo, mostra que Davi já tinha pacificado o sul ao subjugar os filisteus a sudoeste do território israelita e os moabitas a sudeste. Diante disso, ele podia investir militarmente ao norte do seu país. Mas, agindo com traição, o povo de Edom, ao sul de Judá, resolveu aproveitar a oportunidade para atacar seu vizinho cujos exércitos estavam a cerca de quinhentos quilômetros de distância. Isso obrigou Davi a enviar uma tropa para defender o país dos edomitas, tropa que parece ter tido dificuldades para repelir os invasores do Sul. Diante do cansaço da guerra, dos inúmeros inimigos e do constante risco de ser derrotado, Davi escreve o salmo, na forma de um diálogo com Deus, que ensina lições preciosas para o servo de Deus que passa por provações longas e duras.

A primeira lição é reconhecer que as provas não fogem do controle de Deus. O revés militar é imediatamente reconhecido por Davi como uma atuação de Deus (v.1): “Ó Deus, tu nos rejeitaste, nos desmantelaste, pois tu te enfureceste” (’elohîm zenahtanû peratstanû ’anafta). Entendendo que os rumos da guerra vêm do Senhor, Davi não se ocupa apenas dos preparativos e das táticas militares como se tudo dependesse dele. Em lugar disso, ele ora àquele que conduz a história, dizendo: “Restaura-nos!” (teshôvev lanû). Parece que o pensamento de Davi é que, se Deus dá a provação, somente ele pode retirá-la. Por hora, segundo o plano traçado por Deus para esse momento, Davi e seu exército estão abalados com as dificuldades em relação ao número e à ferocidade dos inimigos (v.3): “Fizeste teu povo ver dificuldades” (hir’îtâ ‘ammeka qashâ). Ao dizer isso, Davi não tem em mente apenas o ato de “ver” a dificuldade, mas de atravessá-la, de sofrê-la pessoalmente.

Segundo o salmista, o Senhor não só tinha um propósito em relação à história de Israel, ao reinado de Davi e às suas conquistas militares, como pessoalmente implementou tais propósitos. Contudo, o fez dentro dos parâmetros que previu para tratar seu povo sem fazê-lo perecer (v.4): “Aos que te temem deste uma bandeira para onde possam fugir do alcance do arco” (natattâ lîre’eyka nes lehitnôses miffenê qoshet). Davi não explica que tipo de bandeira ou “sinal” é esse a que se refere. Como não parece ser uma descrição literal de um refúgio sinalizado por uma bandeira – já que isso era algo que um exército sempre tinha e que não poderia se enquadrar em algo especialmente dado por Deus nesse revés em particular – a linguagem de Davi deve ser figurada e a “bandeira” poderia ser o próprio Senhor a quem ele, agora em dificuldades, recorre para encontrar abrigo. A palavra “bandeira” é a mesma que, com o sufixo possessivo, forma um dos nomes pelo qual Deus é conhecido: “Jeová nissi” (o Senhor é minha bandeira) – ver Êxodo 17.15. Essa interpretação é favorecida pela confiança que Davi tem de orar a Deus no versículo seguinte (v.5): “Liberta-nos pela tua destra e responde-nos para que os teus amados possam ser livres” (lema‘an yeholtsûn yedîdeyka hôshî‘â yemîneka wa‘aneniw). No final das contas, é muito claro, na mente do salmista, o domínio de Deus sobre a situação de Israel.

A segunda lição é saber que Deus conhece a hora de por fim às provações. Esse trecho (vv.6-8) está escrito na forma de uma resposta de Deus à primeira oração de Davi (vv.1-5). Pela pena do salmista, o Senhor garante que chegará o momento de ele, novamente, favorecer os israelitas. Discute-se se o conteúdo dos vv.6-8 é o registro de uma revelação divina a Davi ou se o salmista está apenas lançando mão da confiança dada pelas promessas do Senhor registradas nas Escrituras. De qualquer modo, Davi tem convicção de que o mau momento passará e que os inimigos serão subjugados. Ele escreve (v.6): “Deus, em sua santidade, disse: Eu exultarei, pois dividirei Siquém e medirei o vale de Sucote” (’elohîm diber beqodshô ’e‘lozâ ahalleqâ shekem we‘emeq sukôt ’amaded). Siquem está situada em Efraim, a oeste do Jordão, enquanto o vale do Sucote fica em Gade, a leste do Jordão. O significado desse texto parece ser que o Senhor confirmaria a posse aos israelitas da terra que lhes deu, tanto de um lado como de outro do rio Jordão.

Ele continua (v.7) e valoriza territórios como Gileade e Manasses (a leste do Jordão – Manasses também se estendia a oeste) e Efraim e Judá (a oeste do Jordão). Por outro lado, humilha as nações ao sul, nações estas que costumeiramente causavam problemas para Davi e seus súditos (v.8): “Moabe é o meu lavabo; sobre Edom jogarei a minha sandália; sobre a Filístia eu cantarei vitória” (mô’av sîr rahtsî ‘al-’edôm ’ashlîk na‘alî ‘alay peleshet hitro‘a‘î). Com isso, os israelitas podiam esperar o término dos confrontos pela subjugação dos inimigos. O próprio Senhor poria fim às provações.

A última lição é submeter-se inteiramente a Deus como o único que pode dar alívio. A partir do v.9 Davi volta a ser a voz do salmo e faz uma pergunta que revela sua incapacidade inicial de vencer os edomitas: “Quem me levará à cidade fortificada? Quem me guiará até Edom?” (mî yovilenî ‘îr matsôr mî nahanî ‘ad-’edôm). Tais perguntas mostram que o exército israelita, que tinha como meta tomar Edom e sua capital a fim de acabar com os conflitos, não teve êxito nesse intento. A razão de tal ineficácia é o fato de Deus não tê-los feito vitoriosos até então (v.10): “Acaso tu, ó Deus, não nos rejeitaste? Por isso, ó Deus, não sais com nossos exércitos” (halo’-’attâ ’elohîm zenahtanû welo’-tetse’ ’elohîm betsiv’ôteynû). Sabendo disso, em lugar de buscar outros recursos, Davi se volta inteiramente a Deus e suplica seu auxílio (v.11): “Socorra-nos do adversário, pois nulo é o socorro do homem” (havâ-lanû ‘ezrat mitsar weshawe’ teshû‘at ’adam). A submissão à direção e à vontade de Deus dá, então, segurança ao salmista de que eles sairão vencedores dessa intensa provação (v.12): “Em Deus nós faremos proezas, pois ele investirá contra nossos adversários” (be’lohîm na‘aseh-hayil wehû’ yabûs tsareynû).

O mesmo Deus de Davi, aquele que dá provações, que sabe em que medida dá-las e que se compadece dos servos sustentando-os e livrando-os, é o mesmo Deus de hoje, o Deus da igreja. Seus métodos e objetivos também são os mesmos. Ele nos ensina por meio das dificuldades, nunca nos abandona, nos lembra da sua constante presença e da necessidade que temos de depender dele e nos protege do mal. É disso que eu me lembro quando passo por lutas. E é por isso que eu continuo seguindo quando as forças dão mostras de que acabarão. Como na piscina, o cansaço vem, mas vez após vez completamos a prova com nosso Deus nos sustentando e nos impedindo de afundar.

Pr. Thomas Tronco

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Origami Gospel

Origami é uma palavra de origem japonesa. Oru significa “dobrar” e kami é “papel”. Assim, origami é a arte tradicional japonesa que, há séculos (desde 1600 AD), ensina as pessoas a dobrar papel.

Normalmente o papel escolhido para essa prática é quadrado e liso, pois isso facilita o manuseio e a obtenção do bom formato das dobraduras. Porém, no origami o que conta é a paciência e a habilidade em desenvolver desenhos e formas tanto simples (quando iniciantes) como complexas (para os mais experientes).

Com perseverança, concentração e paciência, típicas das culturas orientais, aves, árvores, flores e diversos objetos vão surgindo através das pequenas e inúmeras dobras. Essa prática é tão respeitada que, seguindo a tradição oral, muitos chegaram a atribuir poderes místicos a determinados origamis. Há, por exemplo, uma crença popularizada por Sadako Sasaki (vítima e sobrevivente da Bomba Atômica) de que quem fizer mil origamis da garça japonesa (Tsuru, “garça”) terá um desejo seu atendido.

Apesar de considerar essa prática muito interessante e ter material para isso, jamais consegui fazer um origami. Falta-me habilidade e paciência. O que me consola é saber que o mesmo acontece com muita gente. Contudo, quando se trata de questões de fé, muitos crentes são profissionais no que chamo de “origami gospel”. Como?! Bem, no origami comum o papel assume qualquer forma e aceita todo tipo de contorno que queremos lhe dar. No origami gospel algo parecido acontece. Muitos criam um deus dobrável que se submete à vontade do fiel, assumindo contornos de acordo com a conveniência de quem o manipula. Veja alguns exemplos:

  • O deus pitbull: Feroz, terrível e assustador.
  • O deus garçon: Existe apenas para nos servir.
  • O deus carteiro: Só serve para fazer entregas.
  • O deus criança: Fácil de agradar, de enganar e de iludir.
  • O deus chefe: Basta “bater o ponto” no domingo.
  • O deus flor: Depende de nós para não murchar.
  • O deus ioiô: Vai e vem em minhas mãos.

E por aí vai... O evangélico moderno, em sua ignorância e incredulidade, confecciona o seu deus conforme lhe apraz. Ele o aperta, dobra, vira, desdobra e muda o que não gostou. Então, depois de algum esforço... voilà: deus está prontinho. E o que é melhor: feito sob medida para a gente carregar no bolso.

Até mesmo os teólogos dos dias atuais confeccionam para si deuses nos padrões de origami. Do topo de sua soberba proclamam um deus formado por eles, com limites em sua sabedoria e cheio de imperfeições próprias de seres humanos.

Fico feliz de saber que o Deus a quem sirvo não foi moldado por ninguém. Ele é o Deus verdadeiro, o Deus bíblico. Seus contornos ele mesmo revelou e, por isso, sei que ele é autossuficiente, autoexistente, transcendente, imanente, único, trino, imutável, perfeito, santo, justo e poderoso. Ele não dá e nem deve satisfações às suas criaturas. Antes, dá ordens e toda a criação lhe obedece (Jó 42.2; Sl 115.3).

Alegro-me em crer num Deus assim e em pastorear uma igreja que crê da mesma forma, pois os que inventam seus deuses de dobradura são infelizes e estão enganados. Na verdade, não são crentes de fato, posto que não conhecem realmente a Cristo nem tampouco o Pai. É triste, mas o fato é que, na eternidade, diante dos portões do inferno, muitos descobrirão, apavorados, que acreditaram num ídolo ilusório, num deus de papel! Então, uma vez que rejeitaram a verdadeira fé em troca de mitos, passarão a eternidade sem Deus nenhum. É assim que será. Afinal, as chamas do inferno nunca se apagam e, como se sabe, papel pega fogo!

Pr. Marcos Samuel
Soli Deo gloria

A Condenação e Perseguição do Inocente

Um japonês chamado Ishimatsu Yoshida foi acusado de roubar e matar um turista em uma rua deserta. Duas testemunhas, reconhecendo-o no tribunal como autor do latrocínio, selaram seu destino. Apesar de enfaticamente se declarar inocente, ele enfrentou uma pena de 23 anos de prisão. Ao ser libertado, iniciou uma caçada às testemunhas que o acusaram. Em pouco tempo encontrou uma delas. Esta confessou o falso testemunho e revelou que o autor do crime era a outra testemunha. Ishimatsu passou mais um ano procurando o verdadeiro assassino até capturá-lo e fazê-lo confessar. A reportagem dizia que Ishimatsu entrou com um processo para reconhecer sua inocência, mas que, apesar disso, o que ele nunca conseguiu recuperar foram os 23 anos perdidos da sua vida.

Quem dera esse caso ser o único erro judicial e a única condenação indevida da história! Na verdade, muita gente inocente já pagou por crimes que não cometeu. Davi se queixa justamente disso no Salmo 59. Sua queixa é (v.4): “Sem que eu tenha culpa, eles se apressam e se dispõem [contra mim]” (belî-‘aôn yerûtsûn weyikônanû). O motivo da queixa não é difícil de entender, já que Davi fornece o contexto preciso por meio do título do salmo: “Quando Saul enviou [pessoas] para vigiar a casa [de Davi] a fim de matá-lo” (bishloah sha’ûl wayyishmerû ’et-habbayit lahamîtô).

Tais acontecimentos estão narrados em 1Samuel 19.11-18. O texto conta que Saul enviou homens à noite para vigiar a casa de Davi para que ele não fugisse e para que pudessem matá-no pela manhã. Mical, filha de Saul e esposa de Davi, ao saber do plano, ajudou Davi a fugir pela janela e colocou na cama uma estátua para simular a presença do marido. Ao amanhecer, os homens, por ordem de Saul, vieram buscar Davi. Mical ganhou algum tempo dizendo que Davi estava acamado por uma doença. Quando se descobriu a farsa, Davi já estava longe, e em segurança, na casa do profeta Samuel.

Tendo como pano de fundo essa história de traição e de desejo assassino, Davi compôs o cântico em uma estrutura que parece ter duas estrofes (vv.1-5 e 10-13) e dois refrões (vv.6-9 e 14-17). As mudanças temáticas marcam tais divisões e os refrões são fáceis de reconhecer devido à repetição de uma frase importante do contexto – o cerco noturno dos assassinos (vv.6,14). Entretanto, a música não é de muitas repetições. Ao contrário, ela apresenta um desenvolvimento tanto da história como dos sentimentos e convicções do salmista. Por isso, um modo interessante de analisar esse salmo é seguir seu raciocínio nas suas divisões.

Assim, a primeira estrofe contém um pedido de livramento divino por parte do inocente perseguido. A oração inicial do salmo é (v.1): “Livra-me dos meus inimigos, ó meu Deus, e ponha-me a salvo daqueles que se levantam contra mim” (hatsîlenî me’oyevay ’elohay mimitqômemay tesaggevenî). Além do pedido de livramento, Davi forma uma imagem interessante de tal proteção. O que é traduzido como “ponha-me a salvo” também pode ser entendido como um pedido para que Deus o levantasse e o colocasse em um lugar alto que não pudesse ser alcançado pelos agressores. É mais ou menos a figura de um pai levantando seu filho para que um cão raivoso não o possa ferir – deve-se levar em conta que a figura do ataque de cães raivosos é destacada no texto para se referir à ação dos assassinos. É claro que, com isso, está implícita a ideia da impotência e dependência do salmista como se ele fosse uma criança. Mas é assim mesmo que o servo de Deus deve se sentir ante o poder de Deus.

Além disso, há um perigo adicional para Davi. Os homens que o perseguiam (v.2) eram “assassinos” (’anshê damîm). Uma tradução literal para a qualificação dada por Davi a esses homens é “homens de sangues”, ou seja, homens que já derramaram o sangue de outras pessoas. E a tática usada por eles era a perseguição velada e traiçoeira (v.3): “Eis que eles ficaram de tocaia contra mim” (hinneh ’arvô lenafshî). Esse era o perigo que Davi corria. E tudo isso sem ter feito nada que merecesse tal tratamento, visto que Davi diz: “Homens fortes fazem cerco contra mim sem que eu tenha transgredido ou que eu tenha pecado, ó Senhor” (yagûrû ‘alay ‘azîm lo’-pish‘î welo’-hatta’tî yehwâ).

O primeiro refrão contém a confiança no poder de Deus apesar da fúria dos inimigos. Os dois refrãos iniciam dizendo (vv.6,14): “Eles se volvem durante a noite uivando como cães e rodeiam a cidade” (yashûvû la‘erev yehemû kakkalev wîsôvevû ‘îr). Apesar do símile com a figura dos cães, essa é uma descrição exata da tocaia armada pelos inimigos. Segundo Davi, tais homens estavam totalmente confiantes do sigilo a respeito dos seus planos, dizendo (v.7) entre eles mesmos “quem ouviu?” (mî shomea‘). Essa pergunta é um modo retórico de dizer que os planos continuavam secretos e efetivos. Contudo, a periculosidade dos adversários não consegue tirar a confiança de Davi no Senhor, principalmente depois de, em seu poder, ter Deus feito chegar aos ouvidos de Mical o plano que deveria ser secreto. Por isso, diz o salmista (v.8): “Mas tu rirá deles, ó Senhor” (we’attâ yehwâ tishhaq-lamô). A confiança de Davi é clara: o Senhor é mais poderoso que os poderosos e será vitorioso sobre eles. Diante disso, nenhuma outra declaração seria melhor para encerrar o refrão (v.9) que a afirmação “Deus é o meu alto refúgio” (’elohîm misgavvî).

A segunda estrofe contém o vislumbre da libertação do inocente e do castigo do ímpio. A confiança de Davi é tão firme que rapidamente evolui para a “esperança”. Isso significa que ele tem tanta convicção de que Deus é fiel e que irá socorrê-lo que ele já antevê a libertação e a derrota dos que o perseguem. Ele afirma (v.10): “O Deus a quem amo virá ao meu encontro; Deus me fará ver [a derrota] nos meus inimigos” (’elohê hasdiw yeqaddemenî ’elohîm yar’enî beshoreray). Confiado nessa certeza, Davi ora (v.13): “Destrua-os com ira, destrua-os para que eles sejam como nada e saibam que Deus é soberano em Jacó e até os confins da Terra” (kalleh behemâ kalleh we’ênemô weyede‘û kî-’elohîm moshel beya‘aqov le’afsê ha’arets).

O segundo refrão contém o louvor e o testemunho do inocente pela libertação de Deus. A confiança em Deus, munida da esperança firme e vida da libertação, não poderia levar Davi a outra atitude que não a gratidão a Deus e sua demonstração na forma de adoração. Assim, ele, mais uma vez, inicia o refrão falando do cerco da sua casa pelos inimigos e o contrapõe com sua atitude em resposta à situação (v.16): “Entretanto, eu cantarei sobre a tua força” (wa’anî ’ashîr ‘uzzeka).

Tendo dito isso, Davi faz um contraste muito bonito, poético e sugestivo no trecho em questão. Ele, que iniciou o refrão falando do cerco noturno, no meio das sombras, em uma atitude condizente com as trevas, faz o refrão dar uma virada como poucas. Ele diz: “Pela manhã eu exultarei pela tua bondade” (wa’aranen labboqer hasdeka). Se durante a noite havia perigo, de manhã já ocorreu a libertação. Se de noite reinava a maldade, pela manhã reina a graça e a benignidade do Senhor. Se as trevas dominam o coração dos perseguidores, um raio de luz de pura alegria e louvor brilha no coração do salmista tão logo amanheça o dia. Que melhor maneira encerrar o cântico, depois desse belo ápice, que Davi declarar a Deus o seu amor? Ele encerra (v.17) chamando novamente o Senhor de “Deus a quem eu amo” (’elohê hasdî).

Essa não é uma lição de poesia, apesar da beleza e de nos inspirar tremendamente. Também não é uma lição de gramática, apesar de nos fazer trabalhar com tantas figuras sugestivas e comunicativas. É, na verdade, uma lição a respeito de Deus e da sua soberania sobre tudo e sobre todos. Ninguém pode detê-lo ou intimidá-lo. Nenhum poder ou autoridade pode fazer frente àquele que reina sobre toda a criação. Por outro lado, é também uma lição sobre como os servos de Deus devem se portar nesse mundo.

A receita é sempre a mesma: quando o mundo mau se levanta para destruir o povo de Deus, este ora ao Senhor, confia na sua bondade e louva o seu nome, testemunhando sua bondade por toda parte. As circunstâncias podem variar, mas aquele “em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17) está sempre a postos para, mais uma vez, demonstrar seu amor por aqueles a quem chamou para compor o seu povo. Não importa se o mundo nos considera culpados de não viver sob seu regime dirigido pela carnalidade. Ainda que nos ameacem e persigam injustamente, como se fôssemos culpados, aquele que tem voz e poder em última instância, e que nos justificou por meio de Jesus Cristo, nunca há de nos abandonar ou nos perder dos seus braços.

Pr. Thomas Tronco

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Superior Tribunal de Justiça

Há pouco tempo, li uma história muito interessante. Era sobre um juiz que abriu uma sessão no seu tribunal dizendo às partes: “Cavalheiros, eu tenho em mãos dois cheques. Vocês podem chamá-los de propina. Um deles é do reclamado, no valor de 15 mil dólares. O outro, de 10 mil dólares, é do requerente. Diante disso, minha decisão é devolver 5 mil dólares ao reclamado e julgar o caso baseado apenas nos méritos”. Apesar dos risos que essa história tirou de mim, ela também me deixou pensativo: “Será que há muitos juízes que aceitam propina para decidir a favor de alguém? Será que há muitos governantes que vendem vantagens a pessoas e a grupos empresariais em troca de benefícios financeiros? Será que os escândalos que vemos nos jornais e na televisão são apenas a ponta de um grande iceberg?

Não sei a resposta exata para essas perguntas, apesar de ter bons palpites. Mas uma certeza eu tenho: essa prática não é nova. Davi sofreu com pessoas que, vendo a verdade e tendo plenas condições de agir com justiça, resolveram, por interesse próprio, favorecer a parte forte e promover a injustiça ao fraco e necessitado. O Salmo 58 é um apelo de Davi a Deus justamente por não encontrar nos homens a justiça que barraria o mal e que defenderia o inocente. O contexto de composição do salmo é tremendamente debatido. Possibilidades como a rebelião de Absalão e a atuação destruidora de seres demoníacos são aventadas por muitos estudiosos. Entretanto, o salmo não parece apresentar algo diferente de outros produzidos no período da perseguição de Saul a Davi. Na verdade, a reticência de Davi em tratar seu filho Absalão como inimigo, durante o golpe de estado que ele efetuou, faz com que as duras palavras contidas no Salmo 58 contra as autoridades injustas se encaixem melhor no período em que ele fugia de Saul.

Ao que tudo indica, Davi estava indignado com os feitos iníquos dos homens que assistiam o rei Saul. Todos eles conheciam Davi. Este, por ser genro do rei e comandante do seu exército, frequentava a corte real em Gibeá e convivia com todas as autoridades israelitas, tanto civis, como militares. É certo que tais homens conheciam o caráter de Davi, assim como jamais haviam testemunhado qualquer tipo de tramoia vinda dele no sentido de trair o rei e lhe usurpar o trono. Contudo, quando Davi poupa a vida de Saul, também lhe diz que ele não deveria dar ouvidos a pessoas que o difamavam injustamente: “Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal?” (1Sm 24.9). Ao agirem assim, tais homens pioravam, por pura ambição, a situação que já era terrível entre Saul e seu genro Davi. Parece que é desses homens que Davi fala no Salmo 58. Sobre eles Davi se queixa ao Senhor e clama por uma justa vindicação. O salmo também mostra que, para que tal vingança exista, é necessário um processo de três etapas.
 
A primeira etapa é a realização da maldade pelos injustos. Davi inicia o salmo com duas perguntas (v.1): “Vocês realmente falam coisas justas, ó autoridades? Julgam os filhos dos homens com retidão?” (ha’umnam ’êlîm tsedeq tedaberûn mêsharîm tishpetô benê ’adam). Essas perguntas estão envoltas em ironia da parte do salmista, sendo classificadas como perguntas retóricas. Sendo assim, elas não são um tipo de questionamento, mas uma acusação de injustiça, de parcialidade e de manipulação da verdade por parte de homens que tinham condições – e obrigação – de fazerem o oposto. Parece que Davi se refere ao procedimento mentiroso dessas autoridades para fazer Saul crer que Davi era um traidor. A resposta, desprovida de ironia, é dada no v.2: “De fato, no coração eles elaboram iniquidades e suas mãos distribuem a violência na Terra” (’af-belev ‘ôlot tif‘alûn ba’arets hamas yedêkem tefallesûn).

A acusação de Davi não para por aí. Com ela, vem anexada uma explicação sobre o caráter desses homens (v.3): “Os ímpios se extraviaram desde o ventre materno; os que falam falsidades se desviaram desde o nascimento” (zorû resha‘îm merahem ta‘û mibbeten doverê kazav). Davi associa a maldade e a falsidade dos homens poderosos, que injustamente o perseguiam, à sua condição pecaminosa. Davi faz menção a essa mesma desventura do ser humano quando se refere ao seu próprio pecado no caso de Bate-Seba e Urias (Sl 51.5). A julgar pela gravidade do pecado confessado por Davi no Salmo 51, o fato de ele se referir nos mesmos termos ao pecado dessas autoridades, faz com que a acusação seja revestida de seriedade e de gravidade. No campo prático, o pecado com o qual nasceram – e que não foi tratado pelo perdão divino e pela graça transformadora do Senhor – mostra-se na forma de atitudes perigosas e destrutivas (v.4): “O veneno deles é semelhante ao veneno da serpente” (hamat-lamô kidmût hamat-nahash). Utilizando-se da mesma comparação – a serpente –, Davi os acusa de serem pessoas incorrigíveis, portadoras de corações fechados à verdade e ao arrependimento (vv.4,5): “Como uma cobra surda eles tapam seus ouvidos para não ouvirem a voz dos encantadores” (kemô-peten heresh ya’tem ’oznô ’asher lo’-yishma‘ leqôl melahashîm). Com isso, Davi quis dizer que é mais fácil um encantador domar uma serpente venenosa do que tais homens darem ouvidos à justiça.

Uma atuação malévola como a descrita por Davi certamente cria muito sofrimento nos alvos da maldade, os homens indefesos. Portanto, a segunda etapa é o clamor a Deus pelos injustiçados. O injustiçado, nesse caso, é o próprio salmista. Sofrendo com o mal, ele clama a Deus (v.6): “Ó Deus, quebra os dentes das suas bocas; arranca as presas de leões, ó Senhor” (’elohîm haras-shinnêmô bepîmô malte‘ôt kefîrîm netots yehwâ). Esse pedido violento, que continua nos vv.7-9, não condiz com o ânimo normal de Davi, visto sua piedade com os perseguidores e sua fidelidade a Deus (ver como exemplo 1Samuel 24). Assim, tais palavras duras certamente revelam o sofrimento que afligia o salmista. Tendo em vista que Davi, no Salmo 57.4, comparou as flechas e lanças dos inimigos com dentes de leões, seu clamor mostra que ele está nos limites da sua resistência contra a perseguição militar que está sofrendo. O que torna o clamor a Deus uma das etapas da punição do mal é o fato de Deus se importar com o fraco e dar ouvidos ao seu clamor (Dt 24.14,15). Ele não ignora o pecado contra os fracos e injustiçados.

A etapa final no processo que conduz à vingança contra o pecado dos opressores é a efetivação do castigo pelo justo Senhor. Apesar do momento de dor, Davi já vislumbra o momento em que Deus o livraria punindo os maus. Ele demonstrou tal esperança quando se absteve de resolver por si mesmo, injustamente, sua difícil situação: “Davi, porém, respondeu a Abisai: não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto” (1Sm 26.9-10). Prevendo tal libertação, o salmista, então, prenuncia sua alegria ao ver o Senhor agir (v.10): “O justo se alegrará quando vir a vingança” (yismah tsadîq kî-hazâ naqam). Essa declaração atesta a atuação de Deus em proteger os seus punindo os que lhe oprimem. A conclusão, contrária ao que pensa o injusto (Sl 53.1), é que (v.11) “certamente há um Deus que julga na Terra” (’ak yesh-’elohîm shoftîm ba’arets).

Para ambos os lados, opressores e oprimidos, há lições importantes. Paulo descreve um desses lados nos seguintes termos: “Pois muitos andam entre nós, dos quais, repetidas vezes, eu vos dizia e, agora, vos digo, até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas” (Fp 3.18,19). As pessoas que se veem descritas nesses dizeres devem, olhando para o Salmo 58, saber que Deus não deixará tais atitudes impunes. Diante disso, devem se arrepender dos seus pecados e buscar o único que pode mudar não apenas tal destino, mas o próprio caráter dos que o buscam, fazendo-os “serem feitos filhos de Deus” (Jo 1.12). Quanto aos que já pertencem a Deus, pela fé em Cristo, e atravessam momentos difíceis como o de Davi, devem lembrar-se do seu futuro nos braços do Senhor quando ele separar uns para a vida eterna e outros para a vergonha eterna (Dn 12.2). De qualquer modo, devem eles aguardar o justo juízo daquele que não aceita subornos, nem julga com base em interesses espúrios: o maior de todos os juízes que se assenta no supremo tribunal.

Pr. Thomas Tronco