Quem dera esse caso ser o único erro judicial e a única condenação indevida da história! Na verdade, muita gente inocente já pagou por crimes que não cometeu. Davi se queixa justamente disso no Salmo 59. Sua queixa é (v.4): “Sem que eu tenha culpa, eles se apressam e se dispõem [contra mim]” (belî-‘aôn yerûtsûn weyikônanû). O motivo da queixa não é difícil de entender, já que Davi fornece o contexto preciso por meio do título do salmo: “Quando Saul enviou [pessoas] para vigiar a casa [de Davi] a fim de matá-lo” (bishloah sha’ûl wayyishmerû ’et-habbayit lahamîtô).
Tais acontecimentos estão narrados em 1Samuel 19.11-18. O texto conta que Saul enviou homens à noite para vigiar a casa de Davi para que ele não fugisse e para que pudessem matá-no pela manhã. Mical, filha de Saul e esposa de Davi, ao saber do plano, ajudou Davi a fugir pela janela e colocou na cama uma estátua para simular a presença do marido. Ao amanhecer, os homens, por ordem de Saul, vieram buscar Davi. Mical ganhou algum tempo dizendo que Davi estava acamado por uma doença. Quando se descobriu a farsa, Davi já estava longe, e em segurança, na casa do profeta Samuel.
Tendo como pano de fundo essa história de traição e de desejo assassino, Davi compôs o cântico em uma estrutura que parece ter duas estrofes (vv.1-5 e 10-13) e dois refrões (vv.6-9 e 14-17). As mudanças temáticas marcam tais divisões e os refrões são fáceis de reconhecer devido à repetição de uma frase importante do contexto – o cerco noturno dos assassinos (vv.6,14). Entretanto, a música não é de muitas repetições. Ao contrário, ela apresenta um desenvolvimento tanto da história como dos sentimentos e convicções do salmista. Por isso, um modo interessante de analisar esse salmo é seguir seu raciocínio nas suas divisões.
Assim, a primeira estrofe contém um pedido de livramento divino por parte do inocente perseguido. A oração inicial do salmo é (v.1): “Livra-me dos meus inimigos, ó meu Deus, e ponha-me a salvo daqueles que se levantam contra mim” (hatsîlenî me’oyevay ’elohay mimitqômemay tesaggevenî). Além do pedido de livramento, Davi forma uma imagem interessante de tal proteção. O que é traduzido como “ponha-me a salvo” também pode ser entendido como um pedido para que Deus o levantasse e o colocasse em um lugar alto que não pudesse ser alcançado pelos agressores. É mais ou menos a figura de um pai levantando seu filho para que um cão raivoso não o possa ferir – deve-se levar em conta que a figura do ataque de cães raivosos é destacada no texto para se referir à ação dos assassinos. É claro que, com isso, está implícita a ideia da impotência e dependência do salmista como se ele fosse uma criança. Mas é assim mesmo que o servo de Deus deve se sentir ante o poder de Deus.
Além disso, há um perigo adicional para Davi. Os homens que o perseguiam (v.2) eram “assassinos” (’anshê damîm). Uma tradução literal para a qualificação dada por Davi a esses homens é “homens de sangues”, ou seja, homens que já derramaram o sangue de outras pessoas. E a tática usada por eles era a perseguição velada e traiçoeira (v.3): “Eis que eles ficaram de tocaia contra mim” (hinneh ’arvô lenafshî). Esse era o perigo que Davi corria. E tudo isso sem ter feito nada que merecesse tal tratamento, visto que Davi diz: “Homens fortes fazem cerco contra mim sem que eu tenha transgredido ou que eu tenha pecado, ó Senhor” (yagûrû ‘alay ‘azîm lo’-pish‘î welo’-hatta’tî yehwâ).
O primeiro refrão contém a confiança no poder de Deus apesar da fúria dos inimigos. Os dois refrãos iniciam dizendo (vv.6,14): “Eles se volvem durante a noite uivando como cães e rodeiam a cidade” (yashûvû la‘erev yehemû kakkalev wîsôvevû ‘îr). Apesar do símile com a figura dos cães, essa é uma descrição exata da tocaia armada pelos inimigos. Segundo Davi, tais homens estavam totalmente confiantes do sigilo a respeito dos seus planos, dizendo (v.7) entre eles mesmos “quem ouviu?” (mî shomea‘). Essa pergunta é um modo retórico de dizer que os planos continuavam secretos e efetivos. Contudo, a periculosidade dos adversários não consegue tirar a confiança de Davi no Senhor, principalmente depois de, em seu poder, ter Deus feito chegar aos ouvidos de Mical o plano que deveria ser secreto. Por isso, diz o salmista (v.8): “Mas tu rirá deles, ó Senhor” (we’attâ yehwâ tishhaq-lamô). A confiança de Davi é clara: o Senhor é mais poderoso que os poderosos e será vitorioso sobre eles. Diante disso, nenhuma outra declaração seria melhor para encerrar o refrão (v.9) que a afirmação “Deus é o meu alto refúgio” (’elohîm misgavvî).
A segunda estrofe contém o vislumbre da libertação do inocente e do castigo do ímpio. A confiança de Davi é tão firme que rapidamente evolui para a “esperança”. Isso significa que ele tem tanta convicção de que Deus é fiel e que irá socorrê-lo que ele já antevê a libertação e a derrota dos que o perseguem. Ele afirma (v.10): “O Deus a quem amo virá ao meu encontro; Deus me fará ver [a derrota] nos meus inimigos” (’elohê hasdiw yeqaddemenî ’elohîm yar’enî beshoreray). Confiado nessa certeza, Davi ora (v.13): “Destrua-os com ira, destrua-os para que eles sejam como nada e saibam que Deus é soberano em Jacó e até os confins da Terra” (kalleh behemâ kalleh we’ênemô weyede‘û kî-’elohîm moshel beya‘aqov le’afsê ha’arets).
O segundo refrão contém o louvor e o testemunho do inocente pela libertação de Deus. A confiança em Deus, munida da esperança firme e vida da libertação, não poderia levar Davi a outra atitude que não a gratidão a Deus e sua demonstração na forma de adoração. Assim, ele, mais uma vez, inicia o refrão falando do cerco da sua casa pelos inimigos e o contrapõe com sua atitude em resposta à situação (v.16): “Entretanto, eu cantarei sobre a tua força” (wa’anî ’ashîr ‘uzzeka).
Tendo dito isso, Davi faz um contraste muito bonito, poético e sugestivo no trecho em questão. Ele, que iniciou o refrão falando do cerco noturno, no meio das sombras, em uma atitude condizente com as trevas, faz o refrão dar uma virada como poucas. Ele diz: “Pela manhã eu exultarei pela tua bondade” (wa’aranen labboqer hasdeka). Se durante a noite havia perigo, de manhã já ocorreu a libertação. Se de noite reinava a maldade, pela manhã reina a graça e a benignidade do Senhor. Se as trevas dominam o coração dos perseguidores, um raio de luz de pura alegria e louvor brilha no coração do salmista tão logo amanheça o dia. Que melhor maneira encerrar o cântico, depois desse belo ápice, que Davi declarar a Deus o seu amor? Ele encerra (v.17) chamando novamente o Senhor de “Deus a quem eu amo” (’elohê hasdî).
Essa não é uma lição de poesia, apesar da beleza e de nos inspirar tremendamente. Também não é uma lição de gramática, apesar de nos fazer trabalhar com tantas figuras sugestivas e comunicativas. É, na verdade, uma lição a respeito de Deus e da sua soberania sobre tudo e sobre todos. Ninguém pode detê-lo ou intimidá-lo. Nenhum poder ou autoridade pode fazer frente àquele que reina sobre toda a criação. Por outro lado, é também uma lição sobre como os servos de Deus devem se portar nesse mundo.
A receita é sempre a mesma: quando o mundo mau se levanta para destruir o povo de Deus, este ora ao Senhor, confia na sua bondade e louva o seu nome, testemunhando sua bondade por toda parte. As circunstâncias podem variar, mas aquele “em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17) está sempre a postos para, mais uma vez, demonstrar seu amor por aqueles a quem chamou para compor o seu povo. Não importa se o mundo nos considera culpados de não viver sob seu regime dirigido pela carnalidade. Ainda que nos ameacem e persigam injustamente, como se fôssemos culpados, aquele que tem voz e poder em última instância, e que nos justificou por meio de Jesus Cristo, nunca há de nos abandonar ou nos perder dos seus braços.
Pr. Thomas Tronco
Nenhum comentário:
Postar um comentário