quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Superior Tribunal de Justiça

Há pouco tempo, li uma história muito interessante. Era sobre um juiz que abriu uma sessão no seu tribunal dizendo às partes: “Cavalheiros, eu tenho em mãos dois cheques. Vocês podem chamá-los de propina. Um deles é do reclamado, no valor de 15 mil dólares. O outro, de 10 mil dólares, é do requerente. Diante disso, minha decisão é devolver 5 mil dólares ao reclamado e julgar o caso baseado apenas nos méritos”. Apesar dos risos que essa história tirou de mim, ela também me deixou pensativo: “Será que há muitos juízes que aceitam propina para decidir a favor de alguém? Será que há muitos governantes que vendem vantagens a pessoas e a grupos empresariais em troca de benefícios financeiros? Será que os escândalos que vemos nos jornais e na televisão são apenas a ponta de um grande iceberg?

Não sei a resposta exata para essas perguntas, apesar de ter bons palpites. Mas uma certeza eu tenho: essa prática não é nova. Davi sofreu com pessoas que, vendo a verdade e tendo plenas condições de agir com justiça, resolveram, por interesse próprio, favorecer a parte forte e promover a injustiça ao fraco e necessitado. O Salmo 58 é um apelo de Davi a Deus justamente por não encontrar nos homens a justiça que barraria o mal e que defenderia o inocente. O contexto de composição do salmo é tremendamente debatido. Possibilidades como a rebelião de Absalão e a atuação destruidora de seres demoníacos são aventadas por muitos estudiosos. Entretanto, o salmo não parece apresentar algo diferente de outros produzidos no período da perseguição de Saul a Davi. Na verdade, a reticência de Davi em tratar seu filho Absalão como inimigo, durante o golpe de estado que ele efetuou, faz com que as duras palavras contidas no Salmo 58 contra as autoridades injustas se encaixem melhor no período em que ele fugia de Saul.

Ao que tudo indica, Davi estava indignado com os feitos iníquos dos homens que assistiam o rei Saul. Todos eles conheciam Davi. Este, por ser genro do rei e comandante do seu exército, frequentava a corte real em Gibeá e convivia com todas as autoridades israelitas, tanto civis, como militares. É certo que tais homens conheciam o caráter de Davi, assim como jamais haviam testemunhado qualquer tipo de tramoia vinda dele no sentido de trair o rei e lhe usurpar o trono. Contudo, quando Davi poupa a vida de Saul, também lhe diz que ele não deveria dar ouvidos a pessoas que o difamavam injustamente: “Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura fazer-te mal?” (1Sm 24.9). Ao agirem assim, tais homens pioravam, por pura ambição, a situação que já era terrível entre Saul e seu genro Davi. Parece que é desses homens que Davi fala no Salmo 58. Sobre eles Davi se queixa ao Senhor e clama por uma justa vindicação. O salmo também mostra que, para que tal vingança exista, é necessário um processo de três etapas.
 
A primeira etapa é a realização da maldade pelos injustos. Davi inicia o salmo com duas perguntas (v.1): “Vocês realmente falam coisas justas, ó autoridades? Julgam os filhos dos homens com retidão?” (ha’umnam ’êlîm tsedeq tedaberûn mêsharîm tishpetô benê ’adam). Essas perguntas estão envoltas em ironia da parte do salmista, sendo classificadas como perguntas retóricas. Sendo assim, elas não são um tipo de questionamento, mas uma acusação de injustiça, de parcialidade e de manipulação da verdade por parte de homens que tinham condições – e obrigação – de fazerem o oposto. Parece que Davi se refere ao procedimento mentiroso dessas autoridades para fazer Saul crer que Davi era um traidor. A resposta, desprovida de ironia, é dada no v.2: “De fato, no coração eles elaboram iniquidades e suas mãos distribuem a violência na Terra” (’af-belev ‘ôlot tif‘alûn ba’arets hamas yedêkem tefallesûn).

A acusação de Davi não para por aí. Com ela, vem anexada uma explicação sobre o caráter desses homens (v.3): “Os ímpios se extraviaram desde o ventre materno; os que falam falsidades se desviaram desde o nascimento” (zorû resha‘îm merahem ta‘û mibbeten doverê kazav). Davi associa a maldade e a falsidade dos homens poderosos, que injustamente o perseguiam, à sua condição pecaminosa. Davi faz menção a essa mesma desventura do ser humano quando se refere ao seu próprio pecado no caso de Bate-Seba e Urias (Sl 51.5). A julgar pela gravidade do pecado confessado por Davi no Salmo 51, o fato de ele se referir nos mesmos termos ao pecado dessas autoridades, faz com que a acusação seja revestida de seriedade e de gravidade. No campo prático, o pecado com o qual nasceram – e que não foi tratado pelo perdão divino e pela graça transformadora do Senhor – mostra-se na forma de atitudes perigosas e destrutivas (v.4): “O veneno deles é semelhante ao veneno da serpente” (hamat-lamô kidmût hamat-nahash). Utilizando-se da mesma comparação – a serpente –, Davi os acusa de serem pessoas incorrigíveis, portadoras de corações fechados à verdade e ao arrependimento (vv.4,5): “Como uma cobra surda eles tapam seus ouvidos para não ouvirem a voz dos encantadores” (kemô-peten heresh ya’tem ’oznô ’asher lo’-yishma‘ leqôl melahashîm). Com isso, Davi quis dizer que é mais fácil um encantador domar uma serpente venenosa do que tais homens darem ouvidos à justiça.

Uma atuação malévola como a descrita por Davi certamente cria muito sofrimento nos alvos da maldade, os homens indefesos. Portanto, a segunda etapa é o clamor a Deus pelos injustiçados. O injustiçado, nesse caso, é o próprio salmista. Sofrendo com o mal, ele clama a Deus (v.6): “Ó Deus, quebra os dentes das suas bocas; arranca as presas de leões, ó Senhor” (’elohîm haras-shinnêmô bepîmô malte‘ôt kefîrîm netots yehwâ). Esse pedido violento, que continua nos vv.7-9, não condiz com o ânimo normal de Davi, visto sua piedade com os perseguidores e sua fidelidade a Deus (ver como exemplo 1Samuel 24). Assim, tais palavras duras certamente revelam o sofrimento que afligia o salmista. Tendo em vista que Davi, no Salmo 57.4, comparou as flechas e lanças dos inimigos com dentes de leões, seu clamor mostra que ele está nos limites da sua resistência contra a perseguição militar que está sofrendo. O que torna o clamor a Deus uma das etapas da punição do mal é o fato de Deus se importar com o fraco e dar ouvidos ao seu clamor (Dt 24.14,15). Ele não ignora o pecado contra os fracos e injustiçados.

A etapa final no processo que conduz à vingança contra o pecado dos opressores é a efetivação do castigo pelo justo Senhor. Apesar do momento de dor, Davi já vislumbra o momento em que Deus o livraria punindo os maus. Ele demonstrou tal esperança quando se absteve de resolver por si mesmo, injustamente, sua difícil situação: “Davi, porém, respondeu a Abisai: não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto” (1Sm 26.9-10). Prevendo tal libertação, o salmista, então, prenuncia sua alegria ao ver o Senhor agir (v.10): “O justo se alegrará quando vir a vingança” (yismah tsadîq kî-hazâ naqam). Essa declaração atesta a atuação de Deus em proteger os seus punindo os que lhe oprimem. A conclusão, contrária ao que pensa o injusto (Sl 53.1), é que (v.11) “certamente há um Deus que julga na Terra” (’ak yesh-’elohîm shoftîm ba’arets).

Para ambos os lados, opressores e oprimidos, há lições importantes. Paulo descreve um desses lados nos seguintes termos: “Pois muitos andam entre nós, dos quais, repetidas vezes, eu vos dizia e, agora, vos digo, até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas” (Fp 3.18,19). As pessoas que se veem descritas nesses dizeres devem, olhando para o Salmo 58, saber que Deus não deixará tais atitudes impunes. Diante disso, devem se arrepender dos seus pecados e buscar o único que pode mudar não apenas tal destino, mas o próprio caráter dos que o buscam, fazendo-os “serem feitos filhos de Deus” (Jo 1.12). Quanto aos que já pertencem a Deus, pela fé em Cristo, e atravessam momentos difíceis como o de Davi, devem lembrar-se do seu futuro nos braços do Senhor quando ele separar uns para a vida eterna e outros para a vergonha eterna (Dn 12.2). De qualquer modo, devem eles aguardar o justo juízo daquele que não aceita subornos, nem julga com base em interesses espúrios: o maior de todos os juízes que se assenta no supremo tribunal.

Pr. Thomas Tronco

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