Tenho muitas recordações maravilhosas do meu passado. Algumas delas, surpreendentemente, de quando eu era muito pequeno. São lembranças que vêm e vão, mas que, apesar da sua volatilidade em minha mente, ainda produzem sensações agradáveis. Há também lembranças dolorosas – algumas delas “literalmente” dolorosas. Refiro-me a lembranças das frequentes injeções de antibióticos que eu tomava por causa de infecções de garganta que insistiam em me atacar. O problema não eram as injeções em si, já que, com a devida técnica e com a cooperação do paciente, nenhuma injeção é realmente ruim. Mas cooperação era algo que não vinha de mim. Na verdade, quando eu tomava injeções na farmácia perto da minha casa, ninguém podia comprar nada até que eu fosse liberado, já que “todos” os funcionários tinham de me segurar. Era terrível – e por culpa minha.
Depois de adulto, mas ainda com o trauma de criança, precisei tomar uma sequência de injeções de antibióticos. Eram duas injeções por dia durante quase uma semana. Já fazia pelo menos quinze anos que eu não recebia nenhuma injeção. A primeira delas foi um drama para mim. Minha impressão inicial era de que eu sentiria uma dor insuportável, coisa que nem de perto aconteceu – na verdade, não senti nem a agulha. Nos próximos dias fui recebendo novas doses, sempre em meio ao pânico. Isso perdurou até que me lembrei, em certa dose, que em nenhuma das aplicações anteriores eu havia sofrido qualquer dor. Lembrei-me de que, mediante minha cooperação, nenhuma aplicação doeu. Foi nesse momento que deixei a experiência do passado me acalmar e me livrar do trauma de infância. Hoje, tomo injeções sempre que preciso sem sofrer com isso. Pode parecer pouco, mas para mim foi a libertação de uma escravidão.
Eu não fui o único a me beneficiar de uma recordação. Davi, em um momento de crise, manteve a esperança ao olhar para o passado. O Salmo 61 mostra uma sequência de considerações de Davi diante de uma crise que ele atravessava. Não há um título no salmo que nos ajude a identificar o momento histórico em que ele está inserido. Isso normalmente nos ajuda a compreender cada frase proposta pelo escritor. Contudo, o próprio texto deixa escapar algumas nuances da situação do salmista. Sabemos que Davi estava abalado (v.2) pelos riscos que corria (v.4), riscos de perder o trono e a vida (v.6). Nesse contexto, Davi atravessa três momentos em uma progressão que o leva da angústia à esperança.
O primeiro momento de Davi nessa situação é a tristeza do presente. Fossem quais fossem os detalhes dos acontecimentos ao redor do salmista, o resultado nele é bem definido. Ele diz (v.2): “Da extremidade da Terra eu clamo a ti ao desfalecer o meu coração” (miqtseh ha’arets ’eleyka ’eqra’ ba‘atof livvî). “Desfalecer o meu coração” é uma expressão muito forte. Ela também pode ser traduzida como “no meu desespero”. Não se trata daquele desânimo casual, mas de uma aflição intensa baseada na completa falta de certeza sobre o futuro. O fato de Davi orar a Deus “da extremidade da terra” pode indicar que ele está em uma campanha longe de casa. Uma guerra distante dos próprios domínios é uma guerra em que o inimigo conhece bem a terra e tem, próximo de si, suprimentos e reforços. Isso se dá de modo exatamente oposto no caso dos invasores que, quanto mais longe vão, mais distantes ficam de tudo que prezam e que lhes dá segurança. Não é difícil imaginar como um revés militar em uma situação como essa pode atingir o coração do rei. Davi devia se sentir muito desesperado com os acontecimentos presentes.
Isso tudo o leva ao segundo momento que é o desejo quanto ao futuro. Quem, em um momento de tristeza, não almeja o alívio? Davi não era diferente. Ele olha para o futuro e se imagina protegido do perigo. Esse é seu mais profundo desejo nesse instante. No entanto, como é extremo o seu desespero, é também extremo seu desejo. Ainda no v.2 ele ora: “Que tu me leves até a rocha mais alta que eu” (betsûr-yarûm mimmennî taghenî). Davi quer, aqui, ser colocado em um lugar onde não possa, com suas pernas e braços, alcançar, pois é alto demais para ele. Dificilmente se trata de um lugar físico, mas, utilizando-se de uma figura de linguagem, ele se refere à segurança que somente Deus pode fornecer e garantir. O próprio Senhor é chamado algumas vezes pelo salmista de “rocha”, no sentido de ser o sumo protetor dos que lhe pertencem (Sl 19.14; 62.7) – outros escritores se referiram a Deus nos mesmos termos, sempre atrelando sua segurança pessoal à atuação que vem dele (Dt 32.31; Ps 89.26; 94.22; Is 26.4). Assim, o que Davi pede é algo que para ele é “inatingível”. Seu desejo quanto ao futuro só pode ser alcançado pela mão protetora do Senhor. Somente Deus poderia fazê-lo voltar em segurança para casa, para a presença dos seus amados e para as funções do seu trono.
Como ninguém, exceto Deus, pode conhecer o futuro, o salmista não se sente tranquilo simplesmente por ter desejos quanto ao que viria. Ele sabia que era possível que seus anseios não se realizassem, visto que não estavam sob seu controle. Essa correta percepção conduz, então, o salmista ao seu terceiro momento na situação que é a lembrança do passado. Se Davi não conhecia o futuro, certamente conhecia o passado. Sabia das experiências que tivera com Deus. Se o Senhor agiu de maneiras diversas em cada dificuldade que Davi atravessou, um fator esteve sempre presente: o cuidado de Deus para com o servo. Com isso em mente, Davi justifica sua oração a Deus (v.3): “Pois tu foste o meu refúgio, uma torre forte na presença do inimigo” (kî-hayiyta mahseh lî migdal-‘oz miffenê ’ôyev). Eis o que há nas recordações de Davi: o Senhor o ajudando nas dificuldades, protegendo-o dos inimigos e dando-lhe vitórias gloriosas. “Por que ele agiria diferente agora?”, deve ter pensado Davi. Por isso, a sequência do salmo contém declarações de confiança e promessas de louvor e de fidelidade – exatamente o modo como o servo de Deus deve se comportar em “todas” as circunstâncias.
Em certo sentido, os momentos vividos por Davi durante sua angústia estão presentes na vida de todos nós. Sempre que os problemas crescem e parecem que nos destruirão, ficamos desanimados e sem esperança. Somos abatidos pela dor. Nesse instante, passamos a desejar um futuro melhor. Vislumbramos o momento em que os fortes laços afrouxarão. Muitas vezes, até encontramos consolo em ilusões que sabemos que, na realidade, não ocorrerão. Se até aqui nossa experiência se iguala à do salmista, o terceiro momento desse crescimento pode ou não surgir em nossa vida. Há quem, durante os problemas, se afasta de Deus e, para tanto, utiliza-se de desculpas como “não estou com cabeça para pensar em Deus no momento” ou “você diz isso porque não sabe o momento difícil que estou atravessando”. Se isso acontece, só se pode esperar mais dor e sofrimento.
Por outro lado, há quem, no passado, notou o amor de Deus sustentando, dirigindo e libertando do mal. As recordações do lamento cedendo lugar ao louvor dão a essas pessoas a devida esperança de que Deus continuará a lhes proteger e a ser rocha que fica acima dos problemas, sua torre forte. E ao fazerem isso, progridem na vida cristã, aprendem a depender mais de Deus, conhecem melhor o Senhor e se submetem cada vez mais a ele. Nesse processo todo, as recordações das bênçãos de Deus no passado são ferramentas fundamentais. Afinal, se a recordação de injeções bem aplicadas podem vencer um trauma de infância, imagine o que fará a recordação da graça atuante de Deus em nossa vida!
Pr. Thomas Tronco