Um fato conhecido da humanidade é a capacidade que as pessoas têm de criticar umas às outras. É claro que nem toda crítica é ruim. Bem ou mal intencionadas, as críticas nos dão oportunidade de fazermos a reavaliação da nossa vida ou das nossas tarefas, tirando-nos daquela zona de conforto da qual, às vezes, não avançamos para um degrau superior no desenvolvimento das nossas habilidades. Mesmo assim, é de causar surpresa o modo como algumas pessoas reagem ao ver o que, normalmente, seria reconhecido nos outros como qualidades e progressos.
Charles Haddon Spurgeon, grande pregador da Inglaterra no século 19, contou, certa vez, o caso de um filósofo cínico do mundo antigo chamado Antístenes, discípulo de Sócrates, nascido no século 5 a.C. na cidade de Atenas. Ele, segundo o relato, ao ouvir dizer que Ismênias havia tocado flauta muito bem em certa ocasião, respondeu: “Então, ele não é bom em mais nada, caso contrário, não teria tocado tão bem”. O que dizer disso? Sob esse modo cínico de ver as coisas, alguém que apresenta qualidades em determinada área não é digno de reconhecimento pelo esforço e dedicação, mas de reprimenda por ser inútil em outras tarefas. É claro que isso não deve ser visto desse modo.
Ao que parece, Davi não tinha tal defeito. Ele sabia elogiar e reconhecer, como ninguém, as qualidades que via diante de si. Principalmente, quando elas vinham de Deus. Enquanto o cinismo é, muitas vezes, apontado até mesmo para os céus por meio de comentários jocosos sobre os rumos da história humana – basta haver uma enchente ou um maremoto para que os ateus acusem Deus de não ser bom –, Davi, no Salmo 29, soube reconhecer e glorificar o poder de Deus. Por intermédio da exaltação da “voz do Senhor”, o salmista demonstra que Deus faz tudo que quer, de modo que ninguém pode impedi-lo de fazer qualquer coisa que seja. Ao mesmo tempo, sabe elogiar e reconhecer que sua poderosa voz está ligada à sua imensa bondade e santidade para produzir atos maravilhosos e dignos dos maiores louvores.
Sob esse prisma, Davi inicia o salmo com uma convocação pública ao louvor ao Senhor, dizendo (vv.1,2): “Prestai ao Senhor glória e firmeza; prestai ao Senhor a glória do seu nome” (havû layhwâ kavôd wa‘oz havû layhwâ kevôd shemô). A partir de então, ela passa a fazer comparações entre o poder da “voz do Senhor” e o poder das forças da natureza. A intenção é tripla, sendo a primeira reconhecer o poder de Deus, enquanto a segunda delas é produzir adoração ao Senhor nos leitores ao vislumbrarem a soberania divina.
Para produzir esses intentos, Davi inicia a descrição do poder de Deus (v.3) afirmando que “a voz de Deus está sobre as águas; o Deus da glória troveja; o Senhor está sobre águas abundantes” (qôl yehwâ ‘al-hammayim ’el-hakkavôd hir‘îm yehwâ ‘al-mayim rabîm). Davi está criando na mente do leitor a imagem de uma tempestade ou de uma poderosa enchente. Mas, segundo ele, o poder destruidor das águas e o forte estrondo dos trovões são nada se comparados à voz do Senhor. Um tsunami não passa de uma marola diante das ordens poderosas e incontestáveis do nosso Deus.
A próxima figura aponta para algo de grande resistência. O v.5 diz que “a voz do Senhor desarraiga os cedros” (qôl yehwâ shover ’arazîm). Apesar de o cedro não estar atualmente entre aquelas famosas “madeiras de lei”, na época e no local em que Davi viveu, o cedro era uma madeira nobre e muito utilizada pela sua força e beleza. No mesmo versículo, Davi faz questão de usar nessa comparação a melhor árvore dos seus dias, “o cedro-do-líbano” (’arzê-hallebanôn). Trata-se de uma árvore alta e robusta com raízes fortes e profundas que fazem dela uma árvore “bem arraigada”. Entretanto, nem mesmo essa resistência é capaz de impedir o Senhor de, ao som das suas ordens, arrancá-las da terra fazendo-as tombar. Na verdade, Davi afirma que, caso a voz do Senhor assim ordene, tais árvores pulam de suas covas (v.6): “E ele as faz pular como bezerro” (wayyarqidem kemô-‘egel).
O salmista faz uma afirmação dramática ao comparar o poder de Deus com o poder do fogo. Ele diz (v.7): “A voz do Senhor arranca fagulhas das labaredas de fogo” (qôl yehwâ hotsev lahavôr ’esh). Trata-se de uma tradução difícil que, porém, cria uma imagem na mente do leitor. Apesar do poder destruidor do fogo, Deus o ataca com poder ainda maior. O texto não indica que isso é feito como quem apaga um incêndio com água, mas como se fosse com mais fogo ainda. Lembra aquela técnica moderna de apagar incêndios de poços de petróleo produzindo uma explosão de fogo ainda maior. Essa, talvez seja uma boa figura para entender o quanto a voz do Senhor é mais poderosa que o fogo.
Na sequência (v.8), diz que “a voz do Senhor estremece o deserto” (qôl yehwâ yahîl midbar). Tanto a literatura como os filmes contêm alusões abundantes aos perigos de um deserto como o forte calor, as tempestades de areia e a escassez de água, três perigos mortais. Não é fácil entender que tipo de alusão Davi faz, vistos tantos aspectos poderosos ligados a um deserto. Entretanto, ao citar especificamente o “deserto de Cades” (midbar de qadesh), é bem provável que Davi tivesse em mente as montanhas desérticas da região. Ao fazê-lo, afirma que a voz de Deus é tão poderosa que sua ordem pode, por meio de um terremoto, aplainar as montanhas da região, tornando-as uma superfície plana.
O v.9, diferente dos outros, faz um contraste entre os efeitos produzidos pelas palavras de Deus, mostrando que Deus dá vida e a tira quando quer: “A voz do Senhor dá à luz o cervo e despoja os bosques” (qôl yehwâ yehôlel ’ayyalôt wayyehesof ye‘arôt). Não parece ser coincidência que os dois alvos da voz do Senhor no v.9 ocupem o mesmo espaço. Entretanto, Deus age com cada um conforme lhe apraz (Ef 1.11), pois tem poder para tanto.
A última comparação aponta para o meio da natureza que Deus utilizou no evento mais destrutivo de toda a história da humanidade: o dilúvio. Dele saíram com vida apenas oito pessoas porque foram conservadas por Deus na arca. Ninguém, fora daquela arca, resistiu à força do dilúvio. Apesar disso, diz Davi (v.10): “O Senhor presidiu o dilúvio e para sempre presidirá o Senhor, o rei” (yehwâ lammabûl yashav wayyeshev yehwâ melek le‘ôlam). O poder que demonstrou ter no passado ao enviar o dilúvio, ele ainda o tem e sempre o terá.
Finalmente, depois de feita com exímia eloquência a descrição do poder de Deus pelas comparações já vistas, Davi busca cumprir a terceira das suas três intenções que é criar confiança nos servos de Deus. Todo esse poder sobre a natureza não é um fim em si mesmo na mente do salmista. Ele está argumentando que o poder que Deus demonstra por meio da natureza é o mesmo poder que ele utiliza para cuidar dos seus servos, motivo pelo qual eles não devem temer mal algum. Assim, Davi completa seu salmo dizendo (v.11): “O Senhor dá força ao seu povo; o Senhor abençoa o seu povo com a paz” (yehwâ ‘oz le‘amô yiten yehwâ yebarek ’et-‘amô bashalôm). Em resumo: “Confiem seus caminhos ao Senhor, pois ele é poderoso para cuidar de cada detalhe da vida de cada um de vocês”.
Reconhecimento, adoração e confiança foram três lições de Davi nesse salmo não apenas para os homens dos seus dias, mas de sempre, incluindo a nós. A lição permanece; o que pode variar é o nosso modo de olhar para as circunstâncias da vida e para o poder de Deus. Alguns culpam Deus por tudo dizendo que ele não é bom. Outros pensam que Deus se afastou e deixou tudo sob o controle do homem ou de um destino cego que nem ele conhece. Entretanto, os servos do Senhor conhecem seus atributos, cultuam-no por sua grandeza e têm nele sua alegria e a força para andar nos dias maus. Esses últimos sabem reconhecer cada qualidade do Senhor e vivem gratos por elas, dando testemunho a todos do caráter divino. Eles olham para a perfeição do Senhor sem nunca achar, como Antístenes, que ela é prova de fraquezas em outras áreas. Em tudo eles confiam no Deus todo-poderoso, seu Senhor.
Pr. Thomas Tronco
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