Quando minha filha era pequena, tinha um modo muito curioso de se comportar. Nunca se arriscava. Descia pequenos degraus se apoiando nas paredes ou em qualquer anteparo que a pudesse proteger de uma queda. Gostava de interagir com animais, porém, à distância, sem se arriscar a tomar uma mordida ou uma picada. Amava correr e brincar nos mais diversos lugares, desde que não estivesse sozinha. Quando comparo tais atitudes com os acidentes e “artes” comuns às crianças, sempre fico intrigado com a cautela da minha filha sem que ninguém a tivesse ensinado.
Contudo, apesar de ser cuidadosa ao extremo, desde que estivesse comigo, ela nunca teve medo de fazer coisas que dariam medo nas outras crianças. Bastava eu dizer “confie em mim”. Essa era a senha para que ela fizesse qualquer coisa. A impressão que eu tinha é que, no meu colo, nada a amedrontava, não porque se sentisse poderosa, mas protegida. Não sei qual era a visão que tinha sobre mim, ou quanto poder achava que eu tivesse, mas a confiança que minha filha tinha no pai era ilimitada.
Davi não era criança, mas parecia compartilhar com minha filha a confiança inabalável quando estava na presença do pai – não o carnal, mas o Pai celestial. O Salmo 27 não foi escrito em uma situação de paz para o salmista. Como nos salmos precedentes, Davi estava sofrendo por causa da fúria e das tramas dos seus inimigos. Entretanto, o tom que prevalece nesse salmo não é de clamor ou angústia, mas de confiança e ânimo, por incrível que pareça. Todo o salmo se deixa guiar pela disposição demonstrada desde seu início (v.1): “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei?” (yehwâ ’ôrî weyish‘î mimmî ’îra’). Segundo Davi (v.2), quando seus inimigos o atacaram, “eles escorregaram e caíram” (hemmâ kashlû wenafalû). Mesmo se a guerra fosse declarada e Jerusalém fosse cercada totalmente, diz Davi (v.3): “Mesmo assim, eu sou confiante” (bezo’t ’anî bôteah).
Toda essa confiança não anula, contudo, a oração do salmista. Ele ainda tem anseios e continua tendo petições. Mas elas são de surpreender aqueles que, porventura, não têm uma ligação vital com seu Redentor. O maior desejo de Davi, ao ver-se atacado por pessoas perigosas, é o de estar com Deus. Sabendo do que tramam contra ele, conta ao Pai celestial seu anseio (v.4): “Assentar-me todos os dias da minha vida na casa do Senhor” (shivtî bebêt-yehwâ kol-yemê hayyay). O contexto sugere que Davi, ao dizer “casa do Senhor”, tem em mente o tabernáculo localizado na cidade de Jerusalém. Entretanto, os pedidos de Davi nos indicam que seu interesse maior não era o local em si, mas a presença de Deus. Ele queria se sentir acolhido pelo Senhor. Os motivos de se assentar diariamente na casa do Senhor são expostos: “A fim de contemplar a beleza do Senhor e para refletir no seu templo” (lahazôt beno‘am-yehwâ ûlebaqqer behêkalô). “Contemplar” e “refletir” implicam a ideia da busca de um relacionamento íntimo com Deus. O salmista quer meditar sobre quem Deus é e sentir-se em comunhão com ele. Quer que sua felicidade venha do fato de ser amado pelo Senhor.
A preocupação primária de Davi – a contemplação do Senhor – é seguida pelo seu anseio por um refúgio seguro. Tal fortaleza, porém, não consiste de muralhas e de portas robustas, mas da proteção divina. Representando, ainda, a presença de Deus pela figura do tabernáculo (v.5), Davi escreve: “Pois ele me esconderá no tabernáculo no dia mau e me guardará no esconderijo da sua tenda” (kî yitspenenî besukoh beyôm ra‘â yastirenî beseter ’ahalô). Davi não almejava se esconder debaixo das cortinas da tenda, mas debaixo do cuidado do Pai. É possível até imaginar uma criança no colo do pai escondendo seu rosto do problema enquanto o pai o protege, consola e o “esconde” de todo perigo.
Essa visão, exposta por Davi, é tão reconfortante que é improvável que os beneficiários de um tratamento tão magnífico não sejam agradecidos à fonte da sua segurança. Se pessoas salvas em incêndios ou em acidentes de carro fazem quase sempre questão de demonstrar sua gratidão aos bombeiros que os resgataram, imagine o desejo de Davi diante da atuação de Deus em seu favor. De maneira quase incontida ele afirma (v.6): “Que eu ofereça, no seu tabernáculo, sacrifícios de alegria; que eu cante e faça músicas ao Senhor” (we’ezbehâ be’ahalô zivhê terû‘â ’ashîrâ wa’azammerâ layhwâ). “Gritos de vitória” é um bom modo de entender o que são os “sacrifícios de alegria” escritos por Davi com a intenção continuar utilizando a figura do tabernáculo para representar sua busca e culto a Deus e, também, a disposição do Senhor de ser encontrado, de proteger e de manter comunhão com o servo.
Quem não gostaria de ter o ímpeto de Davi de servir a Deus e adorá-lo com todas as suas forças? Quem pensa assim, normalmente olha para Davi como um “superservo” e se esquece de que ele, pecador como nós, também era guiado por Deus para que assim agisse. Davi conta (v.8) que do seu íntimo surgia uma convite divino que lhe apontava o caminho da presença do Senhor: “A teu respeito diz meu coração: ‘Busque a minha face’” (leka ’amar livvî baqshô panay). O ensino do Novo Testamento sobre a atuação do Espírito Santo como guia (Jo 16.13) parece encontrar, nesse texto, a comprovação da ação correspondente no período vétero-testamentário. Em resposta ao convite paternal, Davi responde positivamente: “Buscarei a tua face, ó Senhor” (’et-paneyka yehwâ ’avaqesh). Como quem vê o pai segurando as mãos frágeis do filho, ensinando-o a andar passinho após passinho, Davi se sente dirigido por Deus.
Os braços do Senhor, na visão do salmista, são tão seguros quanto imutáveis. Não há em Deus apenas poder, mas também constância. Os impulsos, mudanças e desapontamentos que fazem os homens mudarem de atitude uns com os outros não estão presentes na natureza divina. Deus é aquele em quem não há “variação nem sombra de mudança” (Tg 1.17). Por isso, Davi sabe que, ainda que não seja sempre um bom filho, o Senhor nunca o abandonará, nem nas circunstâncias mais extremas. Para expressar essa certeza, ele sugere uma situação realmente extrema que exalta a fidelidade do Senhor (v.10): “Se o meu pai e a minha mãe me desampararem, o Senhor, contudo, me acolherá” (kî ’avî we’immî ‘azavûnî wayhwâ ya’aspenî).
Como não nos sentir seguros ao nos escondermos em braços paternos tão poderosos, amáveis, constantes e fiéis? Não é sem motivo que Davi esperava ser cuidado pelo Senhor, em quem se refugiava e se escondia do mal. Davi imagina o contrário e não vê esperanças (v.13): “Que seria se eu não tivesse crido que iria ver a bondade do Senhor na terra dos vivos?” (lûle’ he’emantî lir’ôt betûv-yehwâ be’erets hayyîm). A resposta natural que nós mesmos podemos dar é: “Não haveria esperanças”. Entretanto, a realidade é que ele – e nós, que cremos no Senhor Jesus – temos, ao nosso redor, braços que podem nos tomar como pequenos bebês e nos dar o cuidado necessário. Assim como minha filha, nós também podemos fazer as coisas mais improváveis para pessoas fracas e falhas. Basta lembrarmos que nosso Pai nos estende as mãos e diz: “Confie em mim”.
Pr. Thomas Tronco
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